CULTURA E AMBIENTE: UM ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE IMIGRANTES DO INTERIOR DO ESTADO

SILVA, Maria do P. Socorro Chaves da 1


INTRODUÇÃO


A ocupação urbana da Colônia Agrícola Chico Mendes é um fenômeno que caracteriza a ocupação urbana em Manaus que, normalmente exige uma (re)territorialização das populações humanas que chegam ao novo ambiente com ausência de infra-estrutura social e sem outros recursos causados pelo fantasma da condição de não-trabalho, tendo como conseqüência imediata os impactos sócio-ambientais. Assim, formula-se que a (re)territorialização poderá depender ou não do que se chamou de elementos adaptativos. Como se dá a geração de renda nas famílias? Os motivos da migração estão relacionados à geração de renda? Existem outros elementos influenciando na necessidade de migrar? Quais os impactos sociais, culturais e ambientais sofridos por essa população naquela área? Como o meio ambiente será influenciado (ou transformado) por essa população? Qual sua relação com a reserva florestal Ducke? Face a isto, esta pesquisa busca compreender os conflitos vividos pelas pessoas que moram na referida ocupação urbana mediante as suas representações sociais sobre a área protegida da Reserva Biológica Adolpho Ducke 2 e pelo entendimento dos significados dos termos de preservação/conservação e degradação/devastação, busca-se descrever e compreender a dinâmica de construção e reconstrução da vida na área urbana, bem como as tendências e as modificações causadas no novo ambiente. Esses conflitos envolvem representações, cujos interesses ideológicos, políticos e econômicos necessitam de uma compreensão teórica, face à nova ética (Boff, 1995).

ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA

A coleta de dados baseou-se quantitativamente em dados secundários e qualitativamente através da observação participante e de entrevistas semi-estruturadas, das suas histórias de vida, de técnicas grupais. As informações foram anotadas, gravadas, transcritas e analisadas pela triangulação metodológica, cuja abordagem vem da tradição hermenêutica de pesquisa. Visando entender as representações socialmente compartilhadas pelos sujeitos desta investigação fez-se uso, para análise e tratamento dos dados, da técnica de associação de idéias (Spink, 1995, pp.130-131), cuja análise centrou-se na totalidade do discurso. Em seguida foi feito o mapeamento do discurso a partir dos temas emergentes definidos a partir da leitura flutuante e guiado pelos objetivos da pesquisa.

COMO VIVIAM EM SEUS LUGARES DE ORIGEM

Observa-se que, de acordo com sua cultura, as pessoas carregam consigo os conhecimentos adquiridos nos lugares aonde nasceram e viveram por longos anos, que é caracteristicamente o manejo com a terra e prática da agricultura nas regiões dos rios Juruá e Purus no Amazonas. Ao relatarem suas histórias de vida, procuram explicar a diferença da utilização das matas entre a cidade e seus lugares de origem, conforme realto: "Porque lá aonde a gente morava tinha plantação, por isso mesmo a gente gosta de plantios; porque a gente é acostumado a plantar às vezes as coisas e tem uma grande diferença aqui em Manaus, que é como todo mundo sabe as matas daqui são completamente diferente, porque pra lá não tem essa diferença que não pode faze uma casa, um roçado" (V.P.S., 1999). Pois lá, as matas faziam parte de suas vidas, diferentemente na cidade.

A VIDA NA COLÔNIA AGRÍCOLA CHICO MENDES

A Colônia Agrícola Chico Mendes é o território por excelência, interesse capaz de abrir um diálogo para acordos para a preservação da reserva Ducke. Eles consideram importante a pesquisa na reserva, mas que redunde em benefícios para a população. Antes da proibição e do conflito as pessoas pegavam água, tomavam banho, se divertiam e tiravam frutas. Hoje eles utilizam a água da reserva por necessidade, pois não há água encanada na referida ocupação.
O esquema 1, contém o relato de uma família sobre como vivem atualmente na Colônia Agrícola Chico Mendes, onde a área de seu sítio corresponde a uma unidade produtiva com projetos de investimentos e perspectivas de transformá-la em seu principal meio de vida. Observa-se a divisão sexual do trabalho familiar, onde o homem cuida do sítio como principal fonte de renda e as funções da mulher são a venda dos produtos no pequeno comércio na cidade e cuidar dos filhos. Mas, atualmente conta com uma pequena produção de hortaliças e de criação animal que, segundo relato, a renda ainda não dá nem para alimentação.

Esquema 1: Modelo esquemático do modo de vida num sítio da Colônia Agrícola Chico Mendes.

Entretanto, esse não é um modelo prevalecente. No geral, as pessoas estão sem trabalho formal e sem capital para incrementar os plantios, além da falta de mão de obra, pois seus filhos foram criados com hábitos urbanos. Na realidade, a lembrança do passado e a cultura que carregam consigo justificam a identificação com a paisagem construída na Colônia Agrícola Chico Mendes. Por isso consideram que a vida na cidade é melhor do que a que levavam no interior do estado. Entretnato, o aqui é melhor do que lá pode ser entendida como uma expressão metafórica percebida nas representações dos imigrantes no interior do estado, onde a cidade é sinônimo de barulho e de zoada e a Colônia Agrícola Chico Mendes não é cidade; lá, é como se fosse uma continuação do modo de vida que levavam no interior, onde o silêncio e a tranqüilidade se fazem presentes: "... Deus me livre, aqui é mesmo que agente tá no interior né, e lá é diferente daquelas agitação toda." (D. M. R., 1999) e "Aqui é como no interior." (L. P. S., 1999).

REPRESENTAÇÃO SOCIAL SOBRE O INPA E A RESERVA DUCKE

Os atuais moradores da Colônia Agrícola Chico Mendes reconhecem a importância da reserva Ducke como fornecedora de oxigênio e concordam com a proibição da entrada das pessoas, mas que se utilizam da fonte de água lá existentes por necessidade, conforme relatos: "é uma mata que trás até oxigênio pra cá, né. Eu acharia que deveria ficar fechada, mas no momento não pode porque a gente tá precisando da água de lá. Mas depois que tiver água, não tem problema, pode fechar; mas por enquanto a gente precisa bastante como as outras pessoas." (I. N. S., 1999).
De acordo com a sua cultura, esses moradores consideram importante a reserva Ducke por causa do que ela pode oferecer, mas querem o seu usufruto. É um usufruto sem a idéia de degradação ambiental, tendo em vista o modo de vida que levavam nos seus lugares de origem, o interior do estado do Amazonas, cuja relação com a natureza é diferenciada do modo de vida ocidental, conforme relato: "Pra mim é importante porque protege as águas e tem muitas fruta, mato, as árvore, os animais e também se aproveitam muitas árvores aí, pra fazer remédio, a gente pode tirar, usar." (N. M. F., 1999). Apesar de concordarem com a proibição, colocam em evidência a sua utilização, de alguma forma, por eles. De um lado, eles já utilizam a água por necessidade; por outro, gostariam de utilizá-la como a utilizavam em seus lugares de origem, como uma extensão do seu modo de vida, tendo em vista a imensidão da floresta amazônica, como por exemplo plantar roçado. Isto não pode nos levar a concluir que eles não têm idéia do esgotável ou do finito, pois à primeira vista parece que há uma contradição. Mas, o que é mais sensato pensar é a percepção de que os seus modos de vida não é degradador da natureza. Segundo essa pessoa a reserva Ducke "é uma mata que trás até oxigênio prá cá né. Eu acharia que deveria ficar fechada, mas no momento não pode porque a gente tá precisando da água de lá. Mas depois que tiver água, não tem problema, pode fechar; mas por enquanto a gente precisa bastante como as outras pessoas." (I. N. S., 1999). Observa-se nesse relato a diferença percebida por essa pessoa das matas do interior do Estado com as da cidade de Manaus - ela generaliza a relação quando fala em "as matas daqui". Esse conflito acontece porque lá em seus lugares de origem conviviam com a natureza e dela faziam uso, mas como parte de suas vidas. Por esses motivos o modo de vida na cidade lhe é estranha, onde a grande mata da reserva Ducke é vista como possibilidade de usufruto dentro da perspectiva cultural.

REPRESENTAÇÃO SOCIAL DE PRESERVAÇÃO E DEGRADAÇÃO

A análise inicial, a fim de avaliar o nível de conhecimento expresso nessas representações de preservação e conservação, foi de caráter comparativa das referidas categorias de palavras do esquema 1 com os conceitos do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). Inicialmente, pediu-se para escreverem num papel o entendimento que os grupos tinham das referidas categorias de palavras. Dos conceitos elaborados pelos dois grupos, montou-se um esquema pela associação de idéias, expressas no esquema 2.

Esquema 2: Associação de idéias sobre preservação, conservação, degradação e devastação dos moradores da Colônia Agrícola Chico Mendes.

Comparativamente, as representações sociais se equivalem do ponto de vista da simplificação, pois o conceito de degradação e devastação do grupo 1 são semelhantes, já que este citou como exemplo de degradação a devastação. Contudo, conforme observa Lévi-Strauss (1976, p.29), tanto o conhecimento mágico quanto o conhecimento científico respondem a exigências intelectuais para satisfazer necessidades práticas. Neste sentido, segundo o grupos de moradores a ação inicial deles naquele ambiente caracterizou um exemplo de degradação/devastação 3: Observa-se, no entanto, que na prática as idéias de preservação e conservação se confundem, e não está ligada ao que se chama de ambiente natural (ou mata primária). Isto é, há uma relação utilitária daquele ambiente. A idéia de preservação aparece relacionada não necessariamente à natureza, mas sim a um objeto que precisa de cuidados: "preservação é um objeto que a gente conserva prá não destruir." (O.L., 1999).
No depoimento a seguir a idéia de preservação está ligada à natureza intacta e conservação à utilidade, onde esses conceitos são entendidos de forma mais geral e abrangente; a uma ação a um determinado objeto e, no caso para explicar que eles preservam e conservam àquele ambiente: "preservação é um apelo quando se refere ao meio ambiente, ao seu estado natural. E, eu acho conservação, por exemplo, manter limpo, conservado prá não destruir; é o caso de uma área, de um sítio... é conservar e não destruir." (D.M.R., 1999). Assim, um ambiente transformado por eles é bonito e foi um ato de conservação: "conservar é tratar e fazer alguma coisa bonita, se o cara conservar vai ficar bonito. É cultivar, plantar pra chegar a esse ponto." (N.L.P., 1999).
O nível de conhecimento do senso comum presentes nas RS sobre preservação/conservação e devastação/degradação possui fragmentos dos conceitos científicos. Ficou evidente a defesa de território daquela área e a possibilidade de diálogo entre as representações da reserva Ducke e a sociedade em geral para o gerenciamento dos recursos do ambiente.

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1 Engenheira Agrônoma, M. Sc. Ciências Humanas, Profa. da Escola Superior Batista do Amazonas (ESBAM) e membro do Núcleo de Estudos Rurais e Urbanos (NERUA).
2 A Reserva Biológica Adolpho Ducke compreende uma área de 10.072ha, situada a Leste da cidade de Manaus, sob jurisdição do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA).

3 Cientificamente, degradação é um "processo gradual de alteração negativo do ambiente, resultantes de atividades humanas que podem causar desequilíbrio e destruição parcial ou total dos ecossistemas"; devastação é o "processo de extração, destruição ou supressão de todos ou da maior parte dos elementos de um determinado ambiente." (....). Cf. GLOSSÁRIO DE ECOLOGIA. 2ª edição, São Paulo: AC/EST-103, 1997