A relação homem -
natureza nas formas de uso e propriedade da terra na amazônia:
um estudo baseado nas comunidades do assentamento Iporá
Débora Cristina B. Rodrigues 1
Fone: (092) 654-2227/9991-5661 E-mail: deb.crist@ig.com.br/debcrist@bol.com.br
O presente trabalho aborda a relação homem - natureza
na Amazônia com base no estudo de caso do Assentamento de Reforma
Agrária Iporá. A análise centra-se no estudo das
formas de uso e propriedade da terra, a partir da trajetória
de vida dos assentados. Entendendo que, as formas de relação
homem-natureza que hoje se configuram na Amazônia, são
resultado de construção histórica - social dos
homens em sociedade no estabelecimento de suas relações
sociais. O estudo desenvolvido baseia-se na minha experiência
no grupo de pesquisa-ação transdisciplinar de Tecnologias
Alternativas , no desenvolvimento do projeto intitulado "Tecnologias
Alternativas 2 para o meio ambiente
rural: aspectos técnicos e socioeconômicos", financiado
pelo Programa Trópico Úmido/MCT/CNPq, com os pequenos
produtores do Iporá.
_______Para o desenvolvimento de tal abordagem,
tomou-se como referência os marcos históricos da questão
agrária no Brasil e na Amazônia, a fim de identificar neste
processo as formas de uso e propriedade da terra, compreendendo que
estas são construídas historicamente pelos homens a partir
do estabelecimento das relações sociais. Identificou-se,
assim, as implicações impostas pela questão agrária
na Amazônia, tendo em vista suas singularidades quanto a população,
natureza e cultura. Contudo, tais implicações não
fazem desaparecer os hábitos e costumes da região, sua
cultura, ao contrário pode-se perceber uma presença forte
dos saberes e conhecimentos tradicionais herdados das populações
indígenas da Amazônia.
ABSTRACT
The present work approaches the relationship man - nature in Amazônia
with base in the study of case of the Establishment of Agrarian Reform
Iporá. The analysis is centered in the study in the use ways
and property of the earth, starting from the trajectory of the people's
life. Understanding that, the forms of relationship man-nature that
today are configured in Amazônia, they are resulted of historical
construction - social of the men in society in the establishment of
its social relationships.
_______For the development of the work,
it was taken as reference the historical marks of the agrarian subject
in Brazil and in Amazônia, as well as the constitution of the
different social segments in the field, in the use process and property
of the earth. It was looked for, still, to notice the implications imposed
by the agrarian subject in Amazônia, tends in its view singularities
as the population, nature and culture.
"A Relação homem-natureza nas formas de uso
e propriedade da terra na Amazônia: um estudo baseado nas comunidades
do Assentamento Iporá 3".
INTRODUÇÃO
O presente trabalho apresenta uma reflexão sobre a relação
homem-natureza na Amazônia, tendo por base as formas de uso e
propriedade da terra, a partir das trajetórias de vidas dos assentados
do Iporá 4. Para apreender
esta relação em um assentamento de reforma agrária
na Amazônia, fez-se necessária a compreensão dos
principais marcos históricos da constituição da
questão agrária brasileira e sua expressão na Amazônia,
por se compreender que as formas de relação homem-natureza
que se nos apresentam hoje são resultado de construção
histórico-social dos homens no estabelecimento de relações
entre si e com a natureza.
_______O estudo desenvolvido baseia-se
na minha experiência no grupo de pesquisa-ação transdisciplinar
de Tecnologias Alternativas , no desenvolvimento do projeto intitulado
"Tecnologias Alternativas 5
para o meio ambiente rural: aspectos técnicos e socioeconômicos",
financiado pelo Programa Trópico Úmido/MCT/CNPq, com os
pequenos produtores do Iporá.
A QUESTÃO AGRÁRIA BRASILEIRA: um breve resgate histórico
A questão agrária no Brasil, historicamente, tem assumido
um caráter de exclusão de grande parte da população
do meio rural, podendo ser identificados alguns marcos históricos
referentes a esta questão, como é o caso do sistema de
"sesmaria", implementado ainda no período colonial
, mas que prevaleceu durante o período de 1530-1822, onde grandes
extensões de terras eram concedidas a particulares. O segundo
marco é o da Lei de Terras de 1850, que regulamenta a discriminação
de terra devolutas e disciplina as formas de acesso à propriedade
de terras públicas, mas seu caráter principal esta em
estabelecer a posse de terra somente mediante a compra, transformando
assim a terra em mercadoria.
______Os conflitos em torno da questão
do uso e posse da terra acirram-se, sobretudo a partir de 1850 com a
Lei de Terras, entre os latifundiários escravistas e os posseiros
que não tinham como adquirir terra para plantar e garantir a
subsistência da família, ficando estes subjugados a situação
de agregados nas grandes fazendas.
______Diante das pressões exercidas
pelos camponeses, e com agravamento dos conflitos na década de
60, pode-se identificar o terceiro marco histórico da questão
agrária brasileira, agora elaborada enquanto proposta de uma
política de reforma agrária, sendo esta apresentada no
Estatuto da Terra, criado a partir da Lei 4.504 de 30 de novembro de
1964. ______Este Estatuto, contudo, não
questiona a propriedade da terra, principal reivindicação
dos segmentos rurais; visa defender à empresa agrícola
e responder a visão desenvolvimentista da agricultura que se
implantava no país neste período. Propunha-se efetivar
a reforma agrária tão esperada e atenuar as grandes desigualdades
no campo. Ao contrário constituiu-se em instrumento utilizado
durante os vinte anos de autoritarismo para consolidar a grande propriedade
capitalista, contribuindo para a ampliação e proteção
dos latifúndios.
_______A discussão em torno da construção
de uma política de reforma agrária para o Brasil tem perpassado
pelos vários governos, desde a década de 60 até
os dias atuais, sem contudo viabilizar do ponto de vista dos pequenos
produtores familiares rurais, uma verdadeira reforma agrária
que questione e resolva, sobretudo, a questão da concentração
de terras no país, que vem se consolidando desde o período
colonial com a utilização do sistema de "sesmaria".
QUESTÃO AGRÁRIA NA AMAZÔNIA
Na Amazônia, a questão agrária assume contornos
particulares, ao mesmo tempo que é resultado de uma política
agrária maior pensada para o país. Assim, a região
tem sido visualizada pelos planos e projetos do governo brasileiro,
sobretudo a partir da década de 60, com os governos militares,
não para a implementação de uma política
de reforma agrária, mas enquanto área de fronteira que
precisava ser "ocupada". O slogan deste período era
"ocupar para não entregar".
Nesta perspectiva, vários foram os projetos de colonização
criados e implementados na região amazônica, que tinham
como pano de fundo questões políticas, sendo a principal
delas dirimir a população rural das áreas de maior
concentração de conflitos na luta pela terra. É
importante destacar que este processo de colonização da
Amazônia traz um grande número de migrantes de várias
partes do país para a região, sendo os nordestinos os
de maior quantidade.
_______Assim, pode-se perceber que a Amazônia
é ocupada por uma diversidade de grupos étnicos e por
populações tradicionais, historicamente constituídas
a partir dos vários processos de colonização e
miscigenação por que passou a região. Nesta perspectiva,
pode-se afirmar que o homem amazônico é hoje resultado
de muitas misturas, com povos e etnias; é resultado de todo este
processo de colonização por que tem passado a Amazônia.
Para Morán(1990), esta heterogeneidade da populações
da Amazônia reflete, ainda, a diversidade do ambiente.
_______Neste sentido, a Amazônia
nem é somente ambiente físico, nem somente ambiente humano,
mas se constituí em um todo complexo que envolve aspectos políticos
e sociais; é resultado, fruto de toda uma construção
histórica do estabelecimento de relações sociais
dos homens entre si e com a natureza.
_______Assim, os vários segmentos
sociais que compõem a Amazônia hoje não são
homogêneos, mas apresentam uma diversidade, pluralidade, que coloca
em evidência as particularidades regionais com base nos conhecimentos
tradicionais, herdados das populações indígenas
da região, em consonância com os saberes e conhecimentos
apreendidos historicamente de outros povos e culturas que se fizeram
e fazem presentes na Amazônia nos dias atuais. A influência
destes outros povos, principalmente a portuguesa, faz surgir a cultura
regional dos caboclos amazônicos (Morán,1990).
_______Esta "nova" cultura pode
ser visualizada enquanto síntese dos conhecimentos produzidos
e assimilados pela sociedade sobre o meio em que vive, sendo esta mediatizada
pela relação dos homens entre si, bem como por suas inter-relações
com a natureza (Chaves,2001). Neste caso, as relações
homem-natureza encontram-se mediadas pela cultura, por experiências
acumuladas pelos povos "ao longo de gerações e pelos
valores sociais e políticos que a sociedade impôs a tais
relações" (Morán,1990:30)
O ESTUDO DE CASO DO ASSENTAMENTO IPORÁ: a relação
homem-natureza no uso da terra
Adivindos de várias regiões do País e até
de outros países 6, os
assentados do Iporá apresentam características e peculiaridades
próprias de suas trajetória de vida. Em geral, vêm
em busca de terra para plantar e sobreviver com a família, com
projetos de vida que pretendem que os dias vindouros sejam melhores
que aqueles deixados para trás.
Ë importante destacar que, a história de deslocamento dos
pequenos produtores familiares rurais brasileiros não se constituem
algo novo, mas hoje encontra sua determinação na grande
concentração de terras, estabelecendo assim novas relações
sociais e de produção no meio rural brasileiro, ocasionando
intensificação do processo de migração da
população rural de uma área para outra, configurando
assim o que Martins(1990) denomina como um nomadismo por parte deste
segmento social na busca de um local para se fixar, plantar, lidar com
a terra e produzir para garantir a subsistência da família.
Este processo de passagem por diversas áreas, têm demonstrado
que as diferentes experiências de trajetórias de vida destes
assentados têm lhes assegurado saberes que dizem respeito aos
mais diferenciados momentos por que passaram e passam no seu dia-a-dia.
Entre eles pode-se ressaltar a relação que estes estabelecem
com a natureza nas diversas formas de uso e propriedade da terra, a
partir de suas trajetórias, com saberes e conhecimentos apreendidos
e (re)elaborados em cada localidade pela qual têm passado.
Na identificação de suas origens e trajetórias
encontra-se a herança das populações indígenas
que formavam a Amazônia, a variedade de formas de uso e apropriação
dos recursos naturais podem ser identificados, ainda nos dias atuais,
na prática de organização da atividade produtiva
dos pequenos produtores familiares rurais enquanto frutos dos saberes
elaborados por estes segmentos sociais em sua vivência na região.
Essas formas e saberes, contudo, não se constituem em leis ou
regras que devem ser seguidas criteriosamente, mas dentro das comunidades,
na própria região. A dinâmica do modo de produção
e apropriação do espaço físico traz os saberes
e conhecimentos herdados ao mesmo tempo que ganha singularidades, que
é enriquecida com saberes dos sujeitos envolvidos neste processo.
Neste sentido, o modo de vida de cada localidade contribui para a formação,
construção da identidade sociocultural desses sujeitos.
Nesta perspectiva de análise, a cultura material das populações
da região tem suas bases nos desenvolvimentos tecnológicos
de produção agrícola tradicional das sociedades
indígenas. Os pequenos produtores familiares rurais herdam um
conjunto de técnicas produtivas e de organização
social como preparo da farinha, coleta de frutos, caça de animais
e material para habitação (palha e tábuas), técnicas
de pesca e extração de matérias-prima para confecção
de peças artesanais e utensílios domésticos, como
também outros conhecimentos presentes nas práticas das
populações amazônidas (Chaves,2001).
No Iporá, as atividades produtivas tradicionais são regidas
e reguladas pelos diferentes ciclos da natureza, uma vez que para cada
período do ano (meses) existem atividades específicas
a serem desenvolvidas, como por exemplo a preparação do
roçado, que conforme descrição dos próprios
assentados é desenvolvida da seguinte forma:
Quadro 01 - Períodos de preparação do roçado
MESES/ANO |
ATIVIDADE PRODUTIVA |
maio/junho |
Broca (roça mato fino) |
Julho/agosto |
Derriba (roça madeira grossa) |
setembro/outubro |
Queimada |
Novembro/dezembro |
Plantio |
janeiro/fevereiro |
Capina 7 |
Fonte: pesquisa da autora, 2001.
Importa salientar que este conhecimento, referente ao modo de produção
na região, vem sendo repassado de pais para filhos, como muitos
produtores afirmam: "meus pais trabalhavam na agricultura, aprendi
assim" (T,2001). Ressalte-se porém, que estes saberes encontram
suas bases reais nas formas de organização da produção
indígena.
Quando questionados sobre como aprenderam, adquiriram tais conhecimentos,
os assentados afirmam que: "Dos 8 anos aos 13 anos eu ajudei meu
pai na lavoura, meu pai era seringueiro, e ajudava ele na roça"
(F, 2001) ; "Trabalhei toda vida em agricultura, nunca trabalhei
de empregada" (M, 2001)
Um assentado de origem gaúcha afirma que "no Sul é
do mesmo jeito, muda às vezes o período do ano para plantio,
tem que observar o clima para ver se pode plantar" (J,2001). Neste
caso, percebe-se que mesmo sendo detentores de um conhecimento tradicional
quanto aos períodos do ano e das atividades a serem desenvolvidas
em cada um deles para preparação do roçado, se
faz necessária a observação do clima, do tempo,
para poder proceder ao preparo da terra e plantio. O referido assentado
diz ainda, que "aqui não dá pra fazer como eu fazia
lá, por causa da terra e as condições que não
tem" , o que demonstra o reconhecimento das diferenças no
lidar com a terra, onde em cada região é diferenciado.
Um outro aspecto a ser destacado nas formas de uso e apropriação
dos recursos naturais pelos assentados é que este apropriar-se
não tem suas bases nas relações puramente econômicas,
mas sobretudo no respeito à dinâmica própria da
natureza, bem como no preenchimento das necessidades de reprodução
física e social do grupo familiar, conforme destaca um dos assentados
quando afirma " eu preciso viver o tempo todo de agricultura"
(T,2001). Neste sentido, a relação que estabelecem com
a natureza - terra, é particularmente de vida, de garantia da
própria subsistência e da família.
CONSIDERAÇÕES GERAIS
O estabelecimento da relação homem-natureza na Amazônia,
mas especificamente no Asssentamento de Reforma Agrária Iporá,
tem suas bases na trajetória de vida dos assentados da área,
podendo ser precebida tal relação nas formas de uso e
propriedade da terra, nas organizações sociopolíticas
e da atividade produtiva deste segmento social, cuja grande maioria
tem sua origem ligada ao meio rural, tendo por base de conhecimentos,
o lidar com a roça, o fazer dos pais, o ajudar desde cedo na
atividade produtiva da família. "Eu trabalhei desde 8 anos
de idade, eu era parceiro do meu pai, de carregar adubo pra ele, colocar
nas covas, eu não saia de perto do meu pai" ( T,2001). "Mas
nasci e me criei na agricultura,(...) eu aprendi a trabalhar na área
que eu nasci" (J,2001)
_______O lidar com a terra, para os assentados
do Iporá, é garantir a própria subsistência,
a produção e reprodução social do seu grupo
familiar.
Bibliografia
CHAVES, Maria do P. Socorro Rodrigues. In. Uma Experiência de
Gestão Participativa de Tecnologias Apropriadas na Amazônia:
o assentamento Iporá. Mimeo, UNICAMP, 1997.
- _______________________________________. In. Reforma Agrária
e os Assentamentos rurais. Mimeo, UNICAMP, 1997.
- D'ÍNCAO, Mª Conceição. A Experiência
dos Assentados: uma contribuição ao debate político
da Reforma Agrária. Lua Nova - Revista de Cultura e Política,
nº 23, Março/1991.
- FERRANTE, Vera Lúcia Botta. Diretrizes Políticas dos
Mediadores: reflexões de pesquisas. In: Assentamentos Rurais:
uma visão multidisciplinar / organizadores - Leonilde Medeiros....
et alli - São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista,1994.b
- MARTINS, José de Souza. Os Camponeses e a Política
no Brasil - As lutas sociais no campo e seu lugar no processo político.
Petrópolis -RJ, Edt. Vozes,1990.
- CHAVES Mª P.Socorro Rodrigues (et. alli).Tecnologias alternativas
para o meio rural: ações pedagógicas e sçio-políticas
de Serviço Social; VIII CBASS-1993
- SILVA, José Graziano. O Que é questão Agrária.
18ª edição, Coleção Primeiros Passos,
Brasiliense, 1994.
Documento
Ante - Projeto de Assentamento IPORÁ. Ministério da
Agricultura e Reforma Agrária - MARA - Instituto de Colonização
e Reforma Agrária - INCRA.
- SUPERINTENDÊNCIA ESTADUAL DO AMAZONAS - SR - 15.1991
1 Mestra
em Natureza e Cultura na Amazônia. Especialista em Gestão
e Organização das Políticas Sociais. Professora
do Departamento de Serviço Social das Faculdades Objetivo em
Manaus/AM.
2 Formado por professores,
profissionais e acadêmicos das áreas de Serviço
Social, Engenharia Elétrica e Engenharia Civil da Universidade
do Amazonas.
3
Este artigo se constituí parte da dissertação de
Mestrado - de mesmo título- apresentado ao Programa de Pós
Graduação em Natureza e Cultura na Amazônia do Instituto
de Ciências Humanas e Letras da Universidade do Amazonas.
4 Assentamento Iporá
criado em 19/04/90, faz parte do Programa de Reforma Agrária
no Amazonas, do Instituto de Colonização e Reforma Agrária
- INCRA, com área de 20.929 ha.
5 Formado por professores,
profissionais e acadêmicos das áreas de Serviço
Social, Engenharia Elétrica e Engenharia Civil da Universidade
do Amazonas.
6 Segundo pesquisa
da autora (2000/2001), 53% dos assentados tem sua origem no interior
do Estado do Amazonas e 21% são de outras regiões, sobretudo
do Nordeste.
7 Esta atividade,
segundo os produtores, tem que ser desenvolvida constantemente até
a colheita.
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