A relação homem - natureza nas formas de uso e propriedade da terra na amazônia: um estudo baseado nas comunidades do assentamento Iporá

Débora Cristina B. Rodrigues 1
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O presente trabalho aborda a relação homem - natureza na Amazônia com base no estudo de caso do Assentamento de Reforma Agrária Iporá. A análise centra-se no estudo das formas de uso e propriedade da terra, a partir da trajetória de vida dos assentados. Entendendo que, as formas de relação homem-natureza que hoje se configuram na Amazônia, são resultado de construção histórica - social dos homens em sociedade no estabelecimento de suas relações sociais. O estudo desenvolvido baseia-se na minha experiência no grupo de pesquisa-ação transdisciplinar de Tecnologias Alternativas , no desenvolvimento do projeto intitulado "Tecnologias Alternativas 2 para o meio ambiente rural: aspectos técnicos e socioeconômicos", financiado pelo Programa Trópico Úmido/MCT/CNPq, com os pequenos produtores do Iporá.
_______Para o desenvolvimento de tal abordagem, tomou-se como referência os marcos históricos da questão agrária no Brasil e na Amazônia, a fim de identificar neste processo as formas de uso e propriedade da terra, compreendendo que estas são construídas historicamente pelos homens a partir do estabelecimento das relações sociais. Identificou-se, assim, as implicações impostas pela questão agrária na Amazônia, tendo em vista suas singularidades quanto a população, natureza e cultura. Contudo, tais implicações não fazem desaparecer os hábitos e costumes da região, sua cultura, ao contrário pode-se perceber uma presença forte dos saberes e conhecimentos tradicionais herdados das populações indígenas da Amazônia.

ABSTRACT


The present work approaches the relationship man - nature in Amazônia with base in the study of case of the Establishment of Agrarian Reform Iporá. The analysis is centered in the study in the use ways and property of the earth, starting from the trajectory of the people's life. Understanding that, the forms of relationship man-nature that today are configured in Amazônia, they are resulted of historical construction - social of the men in society in the establishment of its social relationships.
_______For the development of the work, it was taken as reference the historical marks of the agrarian subject in Brazil and in Amazônia, as well as the constitution of the different social segments in the field, in the use process and property of the earth. It was looked for, still, to notice the implications imposed by the agrarian subject in Amazônia, tends in its view singularities as the population, nature and culture.

"A Relação homem-natureza nas formas de uso e propriedade da terra na Amazônia: um estudo baseado nas comunidades do Assentamento Iporá 3".


INTRODUÇÃO

O presente trabalho apresenta uma reflexão sobre a relação homem-natureza na Amazônia, tendo por base as formas de uso e propriedade da terra, a partir das trajetórias de vidas dos assentados do Iporá 4. Para apreender esta relação em um assentamento de reforma agrária na Amazônia, fez-se necessária a compreensão dos principais marcos históricos da constituição da questão agrária brasileira e sua expressão na Amazônia, por se compreender que as formas de relação homem-natureza que se nos apresentam hoje são resultado de construção histórico-social dos homens no estabelecimento de relações entre si e com a natureza.
_______O estudo desenvolvido baseia-se na minha experiência no grupo de pesquisa-ação transdisciplinar de Tecnologias Alternativas , no desenvolvimento do projeto intitulado "Tecnologias Alternativas 5 para o meio ambiente rural: aspectos técnicos e socioeconômicos", financiado pelo Programa Trópico Úmido/MCT/CNPq, com os pequenos produtores do Iporá.

A QUESTÃO AGRÁRIA BRASILEIRA: um breve resgate histórico

A questão agrária no Brasil, historicamente, tem assumido um caráter de exclusão de grande parte da população do meio rural, podendo ser identificados alguns marcos históricos referentes a esta questão, como é o caso do sistema de "sesmaria", implementado ainda no período colonial , mas que prevaleceu durante o período de 1530-1822, onde grandes extensões de terras eram concedidas a particulares. O segundo marco é o da Lei de Terras de 1850, que regulamenta a discriminação de terra devolutas e disciplina as formas de acesso à propriedade de terras públicas, mas seu caráter principal esta em estabelecer a posse de terra somente mediante a compra, transformando assim a terra em mercadoria.
______Os conflitos em torno da questão do uso e posse da terra acirram-se, sobretudo a partir de 1850 com a Lei de Terras, entre os latifundiários escravistas e os posseiros que não tinham como adquirir terra para plantar e garantir a subsistência da família, ficando estes subjugados a situação de agregados nas grandes fazendas.
______Diante das pressões exercidas pelos camponeses, e com agravamento dos conflitos na década de 60, pode-se identificar o terceiro marco histórico da questão agrária brasileira, agora elaborada enquanto proposta de uma política de reforma agrária, sendo esta apresentada no Estatuto da Terra, criado a partir da Lei 4.504 de 30 de novembro de 1964. ______Este Estatuto, contudo, não questiona a propriedade da terra, principal reivindicação dos segmentos rurais; visa defender à empresa agrícola e responder a visão desenvolvimentista da agricultura que se implantava no país neste período. Propunha-se efetivar a reforma agrária tão esperada e atenuar as grandes desigualdades no campo. Ao contrário constituiu-se em instrumento utilizado durante os vinte anos de autoritarismo para consolidar a grande propriedade capitalista, contribuindo para a ampliação e proteção dos latifúndios.
_______A discussão em torno da construção de uma política de reforma agrária para o Brasil tem perpassado pelos vários governos, desde a década de 60 até os dias atuais, sem contudo viabilizar do ponto de vista dos pequenos produtores familiares rurais, uma verdadeira reforma agrária que questione e resolva, sobretudo, a questão da concentração de terras no país, que vem se consolidando desde o período colonial com a utilização do sistema de "sesmaria".


QUESTÃO AGRÁRIA NA AMAZÔNIA

Na Amazônia, a questão agrária assume contornos particulares, ao mesmo tempo que é resultado de uma política agrária maior pensada para o país. Assim, a região tem sido visualizada pelos planos e projetos do governo brasileiro, sobretudo a partir da década de 60, com os governos militares, não para a implementação de uma política de reforma agrária, mas enquanto área de fronteira que precisava ser "ocupada". O slogan deste período era "ocupar para não entregar".
Nesta perspectiva, vários foram os projetos de colonização criados e implementados na região amazônica, que tinham como pano de fundo questões políticas, sendo a principal delas dirimir a população rural das áreas de maior concentração de conflitos na luta pela terra. É importante destacar que este processo de colonização da Amazônia traz um grande número de migrantes de várias partes do país para a região, sendo os nordestinos os de maior quantidade.
_______Assim, pode-se perceber que a Amazônia é ocupada por uma diversidade de grupos étnicos e por populações tradicionais, historicamente constituídas a partir dos vários processos de colonização e miscigenação por que passou a região. Nesta perspectiva, pode-se afirmar que o homem amazônico é hoje resultado de muitas misturas, com povos e etnias; é resultado de todo este processo de colonização por que tem passado a Amazônia. Para Morán(1990), esta heterogeneidade da populações da Amazônia reflete, ainda, a diversidade do ambiente.
_______Neste sentido, a Amazônia nem é somente ambiente físico, nem somente ambiente humano, mas se constituí em um todo complexo que envolve aspectos políticos e sociais; é resultado, fruto de toda uma construção histórica do estabelecimento de relações sociais dos homens entre si e com a natureza.
_______Assim, os vários segmentos sociais que compõem a Amazônia hoje não são homogêneos, mas apresentam uma diversidade, pluralidade, que coloca em evidência as particularidades regionais com base nos conhecimentos tradicionais, herdados das populações indígenas da região, em consonância com os saberes e conhecimentos apreendidos historicamente de outros povos e culturas que se fizeram e fazem presentes na Amazônia nos dias atuais. A influência destes outros povos, principalmente a portuguesa, faz surgir a cultura regional dos caboclos amazônicos (Morán,1990).
_______Esta "nova" cultura pode ser visualizada enquanto síntese dos conhecimentos produzidos e assimilados pela sociedade sobre o meio em que vive, sendo esta mediatizada pela relação dos homens entre si, bem como por suas inter-relações com a natureza (Chaves,2001). Neste caso, as relações homem-natureza encontram-se mediadas pela cultura, por experiências acumuladas pelos povos "ao longo de gerações e pelos valores sociais e políticos que a sociedade impôs a tais relações" (Morán,1990:30)

O ESTUDO DE CASO DO ASSENTAMENTO IPORÁ: a relação homem-natureza no uso da terra

Adivindos de várias regiões do País e até de outros países 6, os assentados do Iporá apresentam características e peculiaridades próprias de suas trajetória de vida. Em geral, vêm em busca de terra para plantar e sobreviver com a família, com projetos de vida que pretendem que os dias vindouros sejam melhores que aqueles deixados para trás.
Ë importante destacar que, a história de deslocamento dos pequenos produtores familiares rurais brasileiros não se constituem algo novo, mas hoje encontra sua determinação na grande concentração de terras, estabelecendo assim novas relações sociais e de produção no meio rural brasileiro, ocasionando intensificação do processo de migração da população rural de uma área para outra, configurando assim o que Martins(1990) denomina como um nomadismo por parte deste segmento social na busca de um local para se fixar, plantar, lidar com a terra e produzir para garantir a subsistência da família.
Este processo de passagem por diversas áreas, têm demonstrado que as diferentes experiências de trajetórias de vida destes assentados têm lhes assegurado saberes que dizem respeito aos mais diferenciados momentos por que passaram e passam no seu dia-a-dia. Entre eles pode-se ressaltar a relação que estes estabelecem com a natureza nas diversas formas de uso e propriedade da terra, a partir de suas trajetórias, com saberes e conhecimentos apreendidos e (re)elaborados em cada localidade pela qual têm passado.
Na identificação de suas origens e trajetórias encontra-se a herança das populações indígenas que formavam a Amazônia, a variedade de formas de uso e apropriação dos recursos naturais podem ser identificados, ainda nos dias atuais, na prática de organização da atividade produtiva dos pequenos produtores familiares rurais enquanto frutos dos saberes elaborados por estes segmentos sociais em sua vivência na região.
Essas formas e saberes, contudo, não se constituem em leis ou regras que devem ser seguidas criteriosamente, mas dentro das comunidades, na própria região. A dinâmica do modo de produção e apropriação do espaço físico traz os saberes e conhecimentos herdados ao mesmo tempo que ganha singularidades, que é enriquecida com saberes dos sujeitos envolvidos neste processo. Neste sentido, o modo de vida de cada localidade contribui para a formação, construção da identidade sociocultural desses sujeitos.
Nesta perspectiva de análise, a cultura material das populações da região tem suas bases nos desenvolvimentos tecnológicos de produção agrícola tradicional das sociedades indígenas. Os pequenos produtores familiares rurais herdam um conjunto de técnicas produtivas e de organização social como preparo da farinha, coleta de frutos, caça de animais e material para habitação (palha e tábuas), técnicas de pesca e extração de matérias-prima para confecção de peças artesanais e utensílios domésticos, como também outros conhecimentos presentes nas práticas das populações amazônidas (Chaves,2001).
No Iporá, as atividades produtivas tradicionais são regidas e reguladas pelos diferentes ciclos da natureza, uma vez que para cada período do ano (meses) existem atividades específicas a serem desenvolvidas, como por exemplo a preparação do roçado, que conforme descrição dos próprios assentados é desenvolvida da seguinte forma:

Quadro 01 - Períodos de preparação do roçado

MESES/ANO ATIVIDADE PRODUTIVA
maio/junho Broca (roça mato fino)
Julho/agosto Derriba (roça madeira grossa)
setembro/outubro Queimada
Novembro/dezembro Plantio
janeiro/fevereiro Capina 7

Fonte: pesquisa da autora, 2001.

Importa salientar que este conhecimento, referente ao modo de produção na região, vem sendo repassado de pais para filhos, como muitos produtores afirmam: "meus pais trabalhavam na agricultura, aprendi assim" (T,2001). Ressalte-se porém, que estes saberes encontram suas bases reais nas formas de organização da produção indígena.
Quando questionados sobre como aprenderam, adquiriram tais conhecimentos, os assentados afirmam que: "Dos 8 anos aos 13 anos eu ajudei meu pai na lavoura, meu pai era seringueiro, e ajudava ele na roça" (F, 2001) ; "Trabalhei toda vida em agricultura, nunca trabalhei de empregada" (M, 2001)
Um assentado de origem gaúcha afirma que "no Sul é do mesmo jeito, muda às vezes o período do ano para plantio, tem que observar o clima para ver se pode plantar" (J,2001). Neste caso, percebe-se que mesmo sendo detentores de um conhecimento tradicional quanto aos períodos do ano e das atividades a serem desenvolvidas em cada um deles para preparação do roçado, se faz necessária a observação do clima, do tempo, para poder proceder ao preparo da terra e plantio. O referido assentado diz ainda, que "aqui não dá pra fazer como eu fazia lá, por causa da terra e as condições que não tem" , o que demonstra o reconhecimento das diferenças no lidar com a terra, onde em cada região é diferenciado.
Um outro aspecto a ser destacado nas formas de uso e apropriação dos recursos naturais pelos assentados é que este apropriar-se não tem suas bases nas relações puramente econômicas, mas sobretudo no respeito à dinâmica própria da natureza, bem como no preenchimento das necessidades de reprodução física e social do grupo familiar, conforme destaca um dos assentados quando afirma " eu preciso viver o tempo todo de agricultura" (T,2001). Neste sentido, a relação que estabelecem com a natureza - terra, é particularmente de vida, de garantia da própria subsistência e da família.

CONSIDERAÇÕES GERAIS

O estabelecimento da relação homem-natureza na Amazônia, mas especificamente no Asssentamento de Reforma Agrária Iporá, tem suas bases na trajetória de vida dos assentados da área, podendo ser precebida tal relação nas formas de uso e propriedade da terra, nas organizações sociopolíticas e da atividade produtiva deste segmento social, cuja grande maioria tem sua origem ligada ao meio rural, tendo por base de conhecimentos, o lidar com a roça, o fazer dos pais, o ajudar desde cedo na atividade produtiva da família. "Eu trabalhei desde 8 anos de idade, eu era parceiro do meu pai, de carregar adubo pra ele, colocar nas covas, eu não saia de perto do meu pai" ( T,2001). "Mas nasci e me criei na agricultura,(...) eu aprendi a trabalhar na área que eu nasci" (J,2001)
_______O lidar com a terra, para os assentados do Iporá, é garantir a própria subsistência, a produção e reprodução social do seu grupo familiar.

Bibliografia


  • CHAVES, Maria do P. Socorro Rodrigues. In. Uma Experiência de Gestão Participativa de Tecnologias Apropriadas na Amazônia: o assentamento Iporá. Mimeo, UNICAMP, 1997.
  • _______________________________________. In. Reforma Agrária e os Assentamentos rurais. Mimeo, UNICAMP, 1997.
  • D'ÍNCAO, Mª Conceição. A Experiência dos Assentados: uma contribuição ao debate político da Reforma Agrária. Lua Nova - Revista de Cultura e Política, nº 23, Março/1991.
  • FERRANTE, Vera Lúcia Botta. Diretrizes Políticas dos Mediadores: reflexões de pesquisas. In: Assentamentos Rurais: uma visão multidisciplinar / organizadores - Leonilde Medeiros.... et alli - São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista,1994.b
  • MARTINS, José de Souza. Os Camponeses e a Política no Brasil - As lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. Petrópolis -RJ, Edt. Vozes,1990.
  • CHAVES Mª P.Socorro Rodrigues (et. alli).Tecnologias alternativas para o meio rural: ações pedagógicas e sçio-políticas de Serviço Social; VIII CBASS-1993
  • SILVA, José Graziano. O Que é questão Agrária. 18ª edição, Coleção Primeiros Passos, Brasiliense, 1994.

Documento


  • Ante - Projeto de Assentamento IPORÁ. Ministério da Agricultura e Reforma Agrária - MARA - Instituto de Colonização e Reforma Agrária - INCRA.
  • SUPERINTENDÊNCIA ESTADUAL DO AMAZONAS - SR - 15.1991

1 Mestra em Natureza e Cultura na Amazônia. Especialista em Gestão e Organização das Políticas Sociais. Professora do Departamento de Serviço Social das Faculdades Objetivo em Manaus/AM.
2 Formado por professores, profissionais e acadêmicos das áreas de Serviço Social, Engenharia Elétrica e Engenharia Civil da Universidade do Amazonas.

3 Este artigo se constituí parte da dissertação de Mestrado - de mesmo título- apresentado ao Programa de Pós Graduação em Natureza e Cultura na Amazônia do Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade do Amazonas.
4 Assentamento Iporá criado em 19/04/90, faz parte do Programa de Reforma Agrária no Amazonas, do Instituto de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, com área de 20.929 ha.
5 Formado por professores, profissionais e acadêmicos das áreas de Serviço Social, Engenharia Elétrica e Engenharia Civil da Universidade do Amazonas.
6 Segundo pesquisa da autora (2000/2001), 53% dos assentados tem sua origem no interior do Estado do Amazonas e 21% são de outras regiões, sobretudo do Nordeste.
7 Esta atividade, segundo os produtores, tem que ser desenvolvida constantemente até a colheita.