Etnoconservação da Fauna Aquática
no Médio Amazonas: situação atual e perspectivas
1
Henrique dos Santos Pereira 2
José Ribamar da Silva Pinto
RESUMO
A etnoconservação da fauna aquática é analisada
como uma resposta adaptativa das populações ribeirinhas
à ausência de políticas governamentais de gestão
ambiental que atendessem aos seus interesses. Para neutralizar as depleção
de estoques pesqueiros locais e as mudanças tecnológicas
e econômicas na industria pesqueira regional iniciadas na década
de 50 e intensificadas durante a década de 80, diversas comunidades
ribeirinhas da região do Médio Amazonas desenvolveram
sistemas de manejo coletivos da fauna aquática, independentes
da participação do governo e fora do sistema formal de
gestão.
Apenas recentemente, tem-se buscado a formalização destas
instituições locais de manejo. A partir do final dos anos
90, começaram a surgir ações e perspectivas por
parte das agências governamentais e das comunidades que apontam
para o estabelecimento futuro de formas de manejo participativo. A partir
da apresentação de duas experiências: o manejo comunitário
de pesca em Itacoatiara (AM) e o manejo participativo de quelônios
aquáticos em Terra Santa (PA), e com base nas teorias pós-modernas
de manejo de recursos naturais, são analisadas as principais
características e conceitos da etnoconservação
da fauna aquática na região, suas dificuldades e potencialidades.
Palavras-chave: Manejo Comunitário, Manejo Participativo,
Common-pool Resource Theory.
As políticas de conservação de recursos naturais
têm sido guiadas por uma visão determinista segundo a qual,
em situações de livre acesso e apropriação
privada, a exaustão e a degradação do recurso explorado
é inevitável (McKean, 1992). Como a mais popular das metáforas
associadas a essa visão, a “Tragédia dos Comuns”
(Hardin, 1968) passou a ilustrar o que se tem denominado genericamente
de dilema social: uma situação em que ações
individuais podem levar a um resultado que é coletivamente irracional
(Heckathorn, 1996).
Até muito recentemente, governos nacionais têm baseado
suas políticas públicas para o manejo e conservação
de recursos naturais na racionalidade individualista como a imagem paradigmática
do comportamento humano. Evoca-se a inevitável “tragédia”
da exaustão dos recursos explorados coletivamente para justificar-se
quer seja a privatização completa quer seja a centralização
da administração dos recursos naturais pelo poder público
(Stocks, 1987). Exemplo maior encontra-se no modelo de Parques Nacionais
adotado mundialmente. Nestes projetos, as áreas escolhidas são
desapropriadas e as populações tradicionais residentes
nas futuras unidades de conservação são removidas.
O motivo alegado é o de que a permanência de populações
humanas nestas áreas é incompatível com os objetivos
conservacionistas destas unidades.
No entanto, estudos empíricos sobre o comportamento de grupos
de usuários de recursos naturais coletivos permitem concluir
que estes grupos nem sempre seguem a lógica econômica individualista
da "Tragédia dos Comuns". A literatura científica
registra inúmeros estudos que demonstram a capacidade que usuários
de recursos coletivos têm de se organizarem para monitorar seu
próprio comportamento e para impor sanções àqueles
indivíduos que apresentarem comportamento inadequado. Com isso,
a idéia de descentralização da administração
de recursos naturais e o envolvimento de populações locais
têm ganhado espaço na formulação de políticas
públicas e na elaboração de projetos de desenvolvimento
regionais (Ostrom, 1990; Cernea, 1991).
Populações ribeirinhas da microregião do Médio
Amazonas estão entre aquelas que compartilham seus recursos naturais
de uso coletivo. Essa região compreende os municípios
dos Estados do Amazonas e Pará, localizados ao longo da calha
do rio Amazonas, no seu trecho entre as confluências do Rio Negro
(à oeste) e rio Tapajós (à leste). Nesta área,
encontram-se dois dos principais entrepostos de desembarque pesqueiro
da Amazônia: Manaus e Santarém. As populações
rurais desses municípios são diretamente dependentes de
uma pesca de subsistência não competitiva, abundante e
de fácil acesso. Os pescados, incluindo-se os peixes, répteis
e quelônios aquáticos, representam um recurso estratégico
para a reprodução econômica e sociocultural dessas
comunidades. Porém, devido à desvalorização
dos produtos agrícolas tradicionais da várzea (seringa,
cacau e juta) e a valorização do pescado regional nos
mercados interno e externo, estoques locais dessas espécies vêm
sendo ameaçados pela exploração comercial, pondo
em risco até a segurança alimentar das populações
ribeirinhas.
Como resposta à falta de uma política governamental de
gestão ambiental que atendesse aos anseios dessas populações
tradicionais, as comunidades ribeirinhas e as organizações
que as apóiam começaram a assumir a responsabilidade pela
gestão dos recursos naturais, e desenvolveram sistemas de manejo
independentes da participação do governo e fora do sistema
formal de gestão (Smeraldi, 1998).
Estudos recentes revelam que, em várias regiões da Amazônia,
populações ribeirinhas têm se reorganizado para
disciplinar a exploração da fauna silvestre, especialmente
o pescado, em áreas de uso coletivo (MacGrath et al., 1993; McDaniel,
1997 e Begossi, 2001). Embora igualmente dependentes deste recurso natural,
estes grupos atingiram níveis diferenciados no desenvolvimento
de instituições locais de manejo. Constatou-se que enquanto
alguns grupos ainda não haviam desenvolvido quaisquer formas
de ordenamento do uso de seus recursos coletivos, outros já mantinham
acordos formais que incluíam normas de acesso, a proibição
de técnicas de captura predatórias e regras explícitas
sobre a divisão do fluxo de recursos entre os usuários
(Pereira & Cardoso, 1999).
Nos últimos anos a comunidade científica internacional
tem discutido intensamente sobre quais seriam os atributos importantes
em comunidades para que estas tenham as habilidades de enfrentar com
sucesso os desafios da dependência de recursos de uso coletivo
(Pereira, 2001). Para Ostrom (1992), à medida que um grupo se
comportar mais tipicamente como uma comunidade, maior será a
probabilidade de que ele venha a adotar mudanças nas regras operacionais
do uso do recurso que melhorarem a condição do recurso
e o bem-estar da comunidade. Singleton e Taylor (1992) definem comunidade
como: “um conjunto de pessoas (i) com alguns valores compartilhados;
inclusive valores normativos, e preferências, além daqueles
que constituem seu problema de ação coletiva, (ii) com
um conjunto de membros mais ou menos estável, (iii) que esperam
continuar interagindo uns com os outros no futuro, e (iv) cujas relações
são múltiplas e diretas (não mediadas por terceiras
partes)”. Um grupo de usuários locais que apresente estas
características poderia mais facilmente que outros desenvolver
um capital social de tal valor que os ajudasse a enfrentar problemas
de mútua vulnerabilidade.
Em oposição ao modelo determinista da “Tragédia
dos Comuns”, as teorias pós-modernas sobre o manejo de
recursos naturais (McCay, 2000) partem de um outro pressuposto teórico
principal. Segundo esse pressuposto, os indivíduos escolhem racionalmente
suas estratégias de governo, conservação e uso
de recursos em acordo com os incentivos institucionais oferecidos pelo
sistema de manejo. Estes incentivos advêm dos atributos dos três
componentes do sistema e das diversas interações entre
estes: (A) o recurso ou serviço a ser manejado; (B) grupos de
usuários locais; e, (C) as regras e instituições
que governam o uso do recurso (Thompson, 1992).
Existem inegavelmente, contudo, dois tipos de problemas que sempre dificultam
a administração do uso e exploração de recursos
naturais. A regulamentação da exploração
do estoque de um recurso natural pode gerar forte resistência
por parte dos usuários deste recurso. Esquemas de manejo geralmente
implicam no estabelecimento de um limite na quantidade individual ou
coletiva de recurso a ser extraída por vez. Isto pode levar os
usuários a adotarem um comportamento não-cooperativo se
este limite estiver abaixo de suas expectativas de ganho econômico.
Além disso, a regulamentação (ou ordenação)
da exploração de recursos naturais gera custos organizacionais
para os participantes: elaborar planos, reunir, negociar soluções,
implementar o plano, monitorar os participantes, aplicar sanções
etc. Todas estas atividades representam custos individuais e coletivos.
Estes custos podem tornar economicamente inviáveis a implementação
e manutenção do esquema de manejo (Baland e Platteau,
1996), ou então, podem levar alguns participantes a adotarem
um comportamento oportunista, ou seja, beneficiarem-se do esquema de
manejo sem, contundo, contribuir com sua parcela de contribuição
nas atividades e custos de manutenção do esquema de manejo.
SITUAÇÃO ATUAL
Etnoconservação da fauna aquática: os
saberes e fazeres tradicionais
Atualmente, a etnoconservação de recursos aquáticos
na Amazônia é vista como uma resposta adaptativa das populações
locais, para neutralizar perdas naturais e econômicas no ambiente
ribeirinho (MacGrath et al., 1993). Segundo Hartmann (1992), a pescaria
continental no Amazonas tem apresentado inovações tecnológicas
de 1950 a 1970. Smith (1985) e Hartmann (op. cit.) identificaram quatro
principais inovações que foram responsáveis pela
modernização da pesca na Amazônia: (1) especialização
e divisão do trabalho; (2) introdução da fibra
sintética (malhadeira de mica); (3) utilização
do gelo e (4) utilização do motor a diesel para impulsionar
os barcos de pesca. Juntas, estas inovações tecnológicas,
tornaram possível a captura e exploração de várias
espécies, levando a sua exaustão rapidamente. Segundo
Ribeiro (1991), por volta de 1968, iniciou-se a entrada de barcos pesqueiros
de larga escala nos lagos do médio Amazonas, dando inicio assim
à atividade de pesca ainda mais predatória, das espécies
de peixes.
O manejo de pesca comunitário tem se configurado como uma das
expressões da etnoconservação praticada pelas comunidades
amazônicas. Na prática, ele constitui-se de um conjunto
de medidas conservacionistas adaptadas ao contexto de cada comunidade/localidade.
A partir dos anos 80, diversas comunidades ribeirinhas do Estado do
Amazonas, assistidas pela Comissão Pastoral da Terra, passaram
a denominar essas suas práticas de “Preservação
de Lagos”. Estes verdadeiros esquemas locais de manejo incluem
o zoneamento dos ambientes de pesca (lagos, bocas, igarapés etc.)
da comunidade a partir do qual são disciplinadas as atividades
de exploração do recurso pesqueiro local através
da definição do regime de pesca específico para
cada ambiente. Os ambientes aquáticos denominados de “lagos
de manutenção” servem à pesca de subsistência,
geralmente de acesso exclusivo dos comunitários. Os chamados
“lagos de procriação” são lagos onde
a pesca é proibida indeterminadamente. Os demais ambientes de
pesca não incluídos nestas duas categorias são
considerados como lagos livres onde a pesca comercial está liberada.
Somam-se a esse zoneamento pesqueiro, as medidas de monitoramento, fiscalização
e educativas/punitivas acordadas e exercidas pela própria comunidade.
Dois conceitos básicos são fundamentais para a compreensão
das práticas comunitárias de “preservação
dos lagos”: a pesca predatória, a invasão e “as
espécies indicadoras”.
O Conceito de “Pesca Predatória” – Para os
ribeirinhos, o conceito de “pesca predatória” é
definido a partir da relação presa x predador, ou seja,
peixe x pescador. Técnicas, utensílios e modalidades de
pesca que reduzem as chances do peixe “escapar” ou que não
são seletivas, também chamadas de “covardes”,
são consideradas predatórias. Entre estas técnicas
consideradas predatórias estão: a batição
(atingir a superfície d’água com varas para atordoar
e afugentar os peixes em direção a rede), uso de iluminação
elétrica de maior intensidade (lanternas ligadas a baterias elétricas)
e o cerco de canais e “bocas” (áreas de confluência
de rios) são consideras predatórias uma vez que reduzem
a habilidade do peixe em escapar da captura. Além disso, os ribeirinhos
consideram que o uso de utensílios tais como a malhadeira e a
rede de arraste e cerco induzem uma resposta comportamental nos peixes.
Os peixes fogem dos locais onde estas modalidades de pesca são
praticadas, não retornando no ciclo seguinte ou então
“aprendem” a evitar aparelhos de pesca como a malhadeira.
Estas são as explicações para a redução
relativa do volume de captura observada nos lagos não preservados.
Em termos de tecnologia pesqueira pode-se dizer que estas modalidades
correspondem àquelas técnicas de pesca que apresentam
um maior índice relativo de produtividade por esforço
de captura. Nas comunidades que possuem lagos preservados, o uso destas
técnicas não é justificável uma vez que
seus acordos de pesca internos geralmente proíbem a comercialização
do pescado obtido das áreas protegidas. No falar das pessoas
mais idosas (os antigos) estas explicações naturalistas
que evocam um comportamento ou um instinto antropomórfico das
espécies são substituídas por um discurso mais
lúdico, com um forte conteúdo mítico sobre o funcionamento
da natureza. A evocação de entidades maternas, tais como
a “mãe” dos peixes, a “mãe” dos
rios ou dos lagos etc, são usadas como recurso metafórico
na transmissão da noção de fecundidade da natureza,
isto é, da existência de mecanismos que garantem a renovação
e perpetuação dos habitat e dos estoques das espécies.
Certas práticas são consideradas predatórias por
que podem “ferir a mãe” (do peixe, do rio, etc.)
colocando em risco a manutenção desses componentes dos
ecossistemas locais.
Acrescente-se à concepção e definições
de modalidades de pesca predatória, o conceito de “destruição
da casa dos peixes”. A “casa” é um conceito
paralelo ao conceito ecológico de hábitat. Esta modalidade
de prática de pesca predatória está associado a
percepção de que a eliminação da vegetação
aquática (macrófitas aquáticas) , tais como ilhas
de vegetação flutuantes para a desobstrução
dos locais de pesca, determina a destruição de habitat
de refúgio e alimentação das espécies de
peixes. Isto inclui a queimada das pastagens que se formam na bacia
dos lagos durante a seca. Esta prática muito antiga também
tinha o propósito de desobstruir os locais de nidificação
e assim facilitar a captura de quelônios na seca subseqüente.
O conceito de “Invasão” - O que caracteriza a “invasão”
de um ambiente de pesca protegido por uma comunidade é a despesca
clandestina, ou seja, qualquer modalidade ou intensidade de captura
que viole as regras locais que disciplinam a pesca nas áreas
protegidas. Uma “nova” modalidade de pesca artesanal comercial,
e, portanto de “invasão” está se tornando
o principal desafio para as comunidades. Essa novidade veio com o surgimento
de uma nova categoria de pescadores profissionais: os pescadores artesanais
urbanos. Em Itacoatiara, eles são conhecidos como pescadores
“diários”. Esta modalidade de pesca comercial tende
a aumentar devido à migração da população
rural descapitalizada para os centros urbanos regionais. Estes pescadores
urbanos são geralmente antigos moradores da zona rural e que
usam o conhecimento prévio sobre a área para escapar das
equipes de vigilância ou seus contatos sociais para cooptar moradores
para assim obter acesso às áreas preservadas. Eles agem
esporadicamente e individualmente. Usam técnicas de invasão
sofisticadas para burlar a vigilância das áreas protegidas.
Pescam pequenas quantidades em jornadas diárias entre o centro
urbano e os locais de pesca mais próximos.
Estudos de Caso
O manejo de pesca comunitário em Itacoatiara (AM) - Um inventário
realizado em abril de 1998 revelou que entre as 211 comunidades rurais
do município de Itacoatiara, na micro-região do Médio
Amazonas, existiam comunidades que não apresentam quaisquer formas
de controle ou de manejo coletivo da pesca. No entanto, cerca de 56%
dessas comunidades possuíam acordos formais que incluíam
normas e regras explícitas sobre o acesso e uso de recursos pesqueiros
comunitários. Embora em algumas destas comunidades, o grau de
adesão dos comunitários ao regulamento de pesca interno
era elevado e as normas são observadas rigorosamente, em outras,
devido a forte resistência dos usuários, a proposta de
manejo, havia sido rejeitada ou não tem sido validada pela prática
(Pereira, 1999).
Em Itacoatiara, alguns acordos de pesca tiveram início em meados
de 1970 junto com o aparecimento das CEBs (Comunidades Eclesiais de
Base) organizadas pela igreja católica. A maioria dos acordos
de pesca existentes foi implantada a partir do início da década
de 90. Este crescimento pode ser atribuído, segundo avaliação
feita durante o XIV Encontro de Ribeirinhos do Amazonas, por um lado
à multiplicação dos conflitos de pesca ocorrida
após a crise na agricultura local, e por outro pela atuação
da CPT (Comissão Pastoral da Terra) local e o surgimento de grupos
intercomunitários ambientalistas (p. ex., GPR e GAMPA em Tefé
e o GRANAV em Parintins) incentivados pela aproximação
da conferencia mundial das Nações Unidas para o Meio Ambiente,
ocorrida no Rio de Janeiro em 1992.
A estratégia econômica das famílias que fazem parte
de comunidades onde existe o manejo comunitário de pesca é
grandemente influenciada pelo contexto comunitário, ou seja,
pela “pressão dos pares”. Contrariando a racionalidade
individualista da “Tragédia dos Comuns”, essas famílias
de pescadores chegam a optar conscientemente por não obterem
renda monetária com a exploração dos recursos pesqueiros
coletivos. Por serem mais que um simples resultado do comportamento
territorial humano, instituições locais de manejo são
capazes de alguma forma, seja através de relações
de ajuda mútua, de reciprocidade e das vantagens do uso exclusivo
de recursos locais de seus membros, alcançar um elevado grau
de adesão suficiente para manter o acordo interno de pesca. Estas
instituições possuem um caráter conservacionista
inquestionável, pois elas implicam em decisões que curto
prazo são custosas ao indivíduo, mas que ao longo prazo
visam aumentar a sustentabilidade da “colheita” (Beckerman
e Valentine, 1996). Para poderem poupar seus recursos pesqueiros, as
comunidades reduzem ao máximo a exploração comercial
destes recursos ao mesmo tempo em que investem no aumento da produção
agrícola e pecuária. Nestas comunidades, o tempo e a mão-de-obra
familiares que seriam utilizados em atividades de pesca comercial são
investidos em atividades agrícolas.
Estas instituições comunitárias estão baseadas
no direito de apropriação coletiva de ambientes de pesca.
Esse direito embora ilegal, costumava ser reconhecido pelas partes conflitantes
(morador x pescador profissional, por exemplo), pois estava baseado
em valores culturais e na confiança mútua. Este reconhecimento
confere poderes e autoridade às partes que assim podem negociar
uma solução para a disputa.
O manejo comunitário de quelônios em Terra Santa (PA)
- Por iniciativa de algumas famílias ribeirinhas, não
só de Terra Santa, mas também do município vizinho
de Nhamundá (AM), algumas áreas de desova de quelônios
têm sido protegidas. Esta iniciativa surgiu a partir da observação
dos próprios moradores da região, quando percebiam que
seus recursos estavam se tornando cada vez mais escassos à medida
que grupos de usuários externos e internos que tinham acesso
livre às áreas de exploração de forma descontrolada
e sem nenhuma fiscalização.
Preocupados com esta situação e pensando nas gerações
futuras, algumas comunidades decidiram organizar-se em busca de mecanismos
alternativos para reverter esta situação. Em resposta
a essas demanda, a Universidade do Amazonas organizou em 1999, um grande
seminário que pôs em discussão as questões
sobre o manejo participativo. Desde então, a Universidade do
Amazonas vem desenvolvendo o Projeto “Pé de Pincha”.
Este projeto tem sido desenvolvido como projeto de pesquisa e extensão
da Universidade do Amazonas, em parceria com o IBAMA-AM, a Prefeitura
Municipal, com o apoio do CNPq e colaboração de algumas
empresas, trabalhou o manejo de quelônios, a princípio,
em nove áreas de Terra Santa e Nhamundá. Tendo como ponto
de partida essas experiências espontâneas, o Projeto Pé-de-pincha
coordenou ações de manejo extensivo em parceria com as
primeiras nove comunidades voluntárias do projeto.
Nos dois primeiros anos do projeto (1999 e 2000), foram transferidos
1.847 ninhos, com um total de 38.229 ovos e foram soltos 29.476 filhotes
na natureza. Entre os objetivos do projeto, além da conservação
de tracajás (Podocnemis unifilis), pitiús (P. sextuberculata)
e tartarugas (P. expansa) pelos próprios comunitários,
estão presentes a possibilidade de utilização do
recurso para subsistência e até, de acordo com os avanços
do projeto, a possibilidade de comercialização de filhotes
para criadores e para projetos de criação intensiva patrocinados
pelas comunidades envolvidas.
Através do Projeto "Pé-de-Pincha", 550 famílias,
em treze comunidades de Terra Santa e Oriximiná no Pará
e Nhamundá e Parintins no Amazonas têm recebido noções
de educação ambiental e passaram a executar um programa
de manejo sustentável de populações de quelônios
em suas áreas. Atualmente, os Lagos Piraruacá e Xiacá
são manejados como lagos comunitários de manutenção,
por Portaria do IBAMA AM e PA, e contam com o trabalho de 30 agentes
ambientais voluntários treinados pelo IBAMA/FUA para apoio nas
atividades de fiscalização e conservação.
Os excelentes índices de desempenho técnico demonstram
que pelo menos bio-ecologicamente a proposta metodológica de
manejo adotada pelo projeto tem boas perspectivas futuras se comparada
a outras experiências similares (Martinnez e Rodriguez, 1997).
No entanto, a sua continuidade em longo prazo dependerá de que
mais grupos de usuários sejam envolvidos permanentemente e passem
atuar de forma autônoma. Uma das condições necessárias
para isso é que estes agentes “percebam” incentivos
que justifiquem sua participação nas ações
de manejo.
PERSPECTIVAS
Uma auto-avaliação das experiências de etnoconservação
– Durante o XIV Encontro de Ribeirinhos do Amazonas, realizado
em Coari, durantes os dias de 26 a 31 de Julho de 1998, a Comissão
Pastoral da Terra (CPT/AM) coordenou um processo de avaliação
das práticas de etnoconservação feita pelos próprios
ribeirinhos. Esta auto-avaliação foi feita através
de uma série de questionamentos que buscavam detectar quais eram
as dificuldades enfrentadas pelas comunidades quando da implementação
de propostas de preservação de lagos (CPT/AM, 1998).
Um dos questionamentos buscava entender pôr que algumas comunidades
nunca conseguiram implementar a “preservação de
lagos” em suas localidades. Entre as respostas destaca-se a questão
da apropriação dos ambientes aquáticos. Na Amazônia,
o processo de apropriação (posse) de territórios
alagados é uma extensão, em vários sentidos, da
posse tradicional da terra. A despeito dos aspectos legalistas que envolvem
a apropriação de áreas alagáveis, as práticas
sociais que estabelecem as formas de apropriação dos corpos
d’água são as mesmas das da apropriação
da terra. Assim, tem-se na região tanto a apropriação
privada assim como a apropriação coletiva dos ambientes
aquáticos quando estes podem ser considerados uma extensão
(ou estão contidos) do latifúndio privado ou do conjunto
das terras apossadas pelos comunitários. Uma das condições
essenciais para o sucesso da implantação de um esquema
de manejo local é o de que o grupo de usuários tenha o
reconhecimento social e cultural do seu direito de propriedade do ambiente
aquático a ser manejado. Outra condição favorável
à defesa da propriedade deriva das condições de
acesso ao ambiente manejado. Ambientes aquáticos que se tornam
naturalmente inacessíveis ou de difícil acesso, como pôr
exemplo, lagos que têm suas conexão com os canais principais
interrompidos durante a seca, ou que estejam circunscritos pôr
áreas de terras apropriadas, são mais dificilmente “invadidos”
e de mais fácil defesa e monitoramento. Estes elementos definem
os aspectos da geografia humana e da apropriação do espaço
social que são relevantes para o movimento de preservação
de lagos.
Um segundo questionamento buscava saber pôr que alguns comunitários
negam seu apoio (são contra) a preservação dos
lagos. Entre as respostas destaca-se as formas de “resistência
cultural”. A expressão “o que Deus deixou não
acaba” usada pôr comunitários e pescadores para contrapor-se
às propostas de manejo pesqueiro local foi várias vezes
citada pêlos participantes do encontro para exemplificar o tipo
de resistência ideológica enfrentada pêlos partidários
da preservação dos lagos. Isto indica que a primeira etapa
a ser vencida para a implementação do manejo local é
o re-conhecimento de que a escassez local do pescado pode ser atribuída
à sobrepesca também local. Para alguns ribeirinhos, a
memória de um passado recente de “fartura de animais aquáticos”
aliado às flutuações estocásticas dos estoques
naturais devido à fatores climáticos e o comportamento
migratório dos peixes dificultam o estabelecimento da relação
causa-e-efeito entre escassez de pescado e a sobrepesca local. É
no mínimo questionável, para essas pessoas, que a escassez
de pescado possa ser combatida com medidas que prescrevem a contenção
do consumo (exploração) do recurso no local.
Outro questionamento buscava identificar quais benefícios e vantagens
têm sido observadas em comunidades que implementaram com sucesso
a “preservação de lagos”. Para os ribeirinhos
o manejo comunitário da pesca vem permitindo uma série
de conquistas entre as quais se destacavam: (1) Reconhecimento público
do movimento, (2) Regularização e aumento do consumo local
de pescado nas comunidades, (3) Redução das distâncias
percorridas nas pescarias, (4) Redução do tempo de duração
das pescarias, (6) Aumento da produção agrícola,
(7) Revitalização e Mobilização das comunidades
a partir da preservação, (8) Aumento de peixes e outros
animais nos lagos, (9) Conscientização de jovens e crianças
e (9) Subsídio econômico para outras atividades das comunidades.
Um dos aspectos positivos mais importantes da implementação
de propostas de preservação de lagos é que ela
tem servido para a revitalização da organização
das comunidades e que traz como conseqüências inclusive o
aumento da produção agrícola nos locais. A preservação
dos lagos reduz o tempo produtivo gasto nas atividades de pesca de subsistência
e o tempo “poupado” pode ser redirecionamento às
atividades agrícolas. A regularização e o aumento
do consumo local de pescado nas comunidades é um efeito verificado
em curtíssimo prazo, geralmente após dois ou três
anos de preservação. Os ribeirinhos explicam que isto
se deve ao fato de o lago preservado não sofrer uma despesca
total (intensa) nos meses de seca. Os peixes, inclusive indivíduos
sub-adultos das espécies migratórias que não foram
capturados, permanecem no lago e nas áreas inundáveis
adjacentes durante a cheia subseqüente. Assim sendo, o estoque
pesqueiro local pode ser explorado na entressafra e pôr um período
de tempo mais prolongado.
Novos caminhos - A partir de 1997, as iniciativas de etnoconservação
patrocinadas e mantidas pelas populações ribeirinhas começaram
a se encaminhar para o estabelecimento de formas de manejo participativo,
definido por Borrini-Feyerabend (2000) como “... uma situação
na qual dois ou mais atores sociais negociam, definem e asseguram entre
si uma divisão justa das atividades de manejo, dos direitos e
responsabilidades sobre um determinado território, área
ou conjunto de recursos naturais...”. Nestes casos, os vários
atores sociais incluiriam as comunidades ribeirinhas, o setor empresarial
e as agências governamentais.
No entanto, para que haja avanço nesta direção,
é necessário que o poder público reconheça
os trabalhos das comunidades e considere os problemas que podem inviabilizar
estas iniciativas. Há várias incoerências de ordem
econômica, legal e institucional de âmbito nacional, estaduais
e municipais, que precisam ser corrigidas imediatamente.
O IBAMA é o órgão que estabelece as leis e as sanciona
através do gerenciamento das ações de manejo e
exploração dos recursos, tanto faunísticos quanto
florísticos no território nacional. Enquanto o escritório
regional deste órgão possui alguma flexibilidade em adaptar
regulamentações para as condições locais,
todas as principais decisões de gerenciamento devem ser formalizadas
em portarias assinadas pelo seu presidente. Este requerimento é
um dos principais obstáculos à habilidade do IBAMA em
administrar questões sobre o manejo local.
Uma outra grande questão, diz respeito à posse coletiva.
Existe a necessidade de se legitimar e estruturar a posse coletiva de
terras de várzea como elemento central de um modelo de gestão
participativa (Smeraldi, 1998). Uma das dificuldades em implantar sistema
de manejo coletivo está embasada nas interpretações
do “código das águas”. No caso de uma organização
comunitária de ribeirinhos que reivindica o fechamento de um
lago para mantê-lo como de uso exclusivo da comunidade, o IBAMA,
legitima o acordo apenas no contexto de um regime de livre acesso. Os
acordos podem definir a maneira como os recursos pesqueiros serão
utilizados, mas não pode definir quem pode pescar, tampouco,
proibir que pescadores externos tenham acesso. Tal situação
causa um maior desestímulo ao manejo quando não permite
que o grupo social que investe espontaneamente na fiscalização
e na redução de acesso ao recurso receba os benefícios
desse esforço.
As organizações comunitárias e os recém-criados
agentes ambientais voluntários têm poderes muito limitados
de fiscalização dos acordos de pesca, restritos apenas
à constatação e não a autuação.
Portanto, a viabilidade dos acordos dependerá do amparo que as
comunidades recebem das várias instâncias do governo. Devido
a sua importância e atualidade, esse tema tornou-se um dos principais
debates durante o XVII Encontro de Ribeirinhos, realizado em 2001.
CONCLUSÕES
O manejo local participativo baseado nas práticas de etnoconservação
representa uma alternativa ao modelo convencional baseado no “seqüestro
social” de grandes territórios para o estabelecimento de
unidades de conservação geridos exclusivamente pelo poder
público (Diegues, 1994). Iniciativas espontâneas como as
das comunidades assistidas pela CPT e pioneiras como a do projeto Pé-de-Pincha
buscam integrar e potencializar ações que objetivem a
conservação da natureza e o desenvolvimento social de
populações rurais, simultaneamente.
Para que haja perspectivas futuras para esse modelo na direção
do estabelecimento de formas de gestão participativa, torna-se
indispensável uma melhor compreensão das complexidades
sociais e ambientais nas quais atuam os diversos atores sociais que
interagem nas ações de conservação. A partir
de 2002, o INPA, a Universidade do Amazonas e Universidade do Pará,
estarão desenvolvendo projetos de pesquisa destinados a determinar
as bases bio-ecológicas para o monitoramento do manejo comunitário
de pesca (Programa Norte de Pesquisa e Pós-graduação
– PNOPG/CNPq). Este entendimento será crucial para a reformulação
de atitudes, práticas de manejo e conservação de
recursos pesqueiros e da própria legislação ambiental
brasileira. Estas reformulações deverão ocorrer
de tal forma a minimizar os conflitos advindos do choque de interesses
dos diversos segmentos sociais envolvidos.
Referências Bibliográficas
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Beckerman, S. e Valentine, P. On Native American Conservation and the
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Begossi, A. Cooperative and Territorial resources: Brazilian Artisanal
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1 Apresentado ao I Encontro de
Etnobiologia e Etnoecologia da Região Norte (I ENCETNO). Manaus
(AM), 5 a 8 de dezembro de 2001. Promovido pela Sociedade Brasileira
de Etnobiologia e Etnoecologia.
2 Prof. Adjunto
da Faculdade de Ciências Agrárias (FCA/UA). Av. Gal. Rodrigo
O. J. Ramos, 3000. Japiim. Manaus (AM) CEP: 69.077-000. tel/fax.: (092)
647 4043. Email: hsp2@argo.com.br.
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