Gênero, meio ambiente e modos de vida da população do Parque Nacional do Jaú/Am.
A criação desta UC não considerou
o fato da área ser habitada por antigos moradores, fator que
trouxe sérios problemas, pois não havendo como remover
as famílias do local, as atividades praticadas por elas se contrapunham
aos interesses conservacionistas. Segundo a legislação
brasileira, as terras destinadas às UC's são patrimônios
da União, não podendo pertencer a posseiros, a particulares,
ou ao Estado. Logo, o Jaú deve estar sob domínio e administração
da União, através de seus órgãos competentes. A lei é clara com relação à
presença humana em Ucs de uso indireto, porém a realidade
é outra na maioria das UC's da América do Sul. Segundo
Oliveira (1999), em 86% delas existem moradores ocupando a área
há séculos e sobrevivendo do uso dos recursos naturais.
No PNJ a situação não foge à regra, a presença
humana no local data de alguns séculos atrás. Rebelo (1994),
Oliveira e Anderson, (1999), Porro, (1995), Jesus (1998) e outros fazem
uma retrospectiva histórica da presença humana no local
e, segundo eles, a ocupação humana é anterior ao
período colonial, ou melhor, pode-se dizer que data de aproximadamente
2 mil anos atrás, pois existem nas proximidades da UC, pinturas
rupestres e outros indicativos que o confirmam. A população que habita o PNJ possui a característica
da maioria da população interiorana do Amazonas, buscando
sempre se estabelecer próxima às margens dos rios, facilitando
assim a execução das atividades necessárias à
sua subsistência. A distribuição espacial dos habitantes ocorre
de acordo com a facilidade de acesso aos recursos naturais e hoje, esses,
na sua maioria, estão agrupados em comunidades, que surgem de
acordo com as afinidades ou necessidades de cada grupo, sendo as mais
comuns a questão do parentesco, dos apadrinhamentos, grupos de
amigos e/ou de necessidades sociais e econômicas. Outro fator
que influencia a formação comunitária é
a questão da distância, pois geralmente no interior do
Amazonas as casas dos moradores ficam distantes quilômetros uma
das outras. O fato deles estarem organizados em comunidades faz com
que fiquem mais próximos, facilitando assim o acesso à
igreja, à escola, à partida de futebol e às outrasatividades
comuns aos grupos. Todas as comunidades possuem seus representantes, que
se manifestam junto à administração do Parque e
junto às autoridades competentes dos municípios para reivindicar
o que for de interesse do grupo. Procuram se reunir também nas
construções coletivas, para ajudar um membro do grupo,
fazendo os chamados ajuris ou mutirões 3
para construir escolas, limpar áreas de lazer construir igrejas,
capinar a roça ou construir a casa de um amigo que esteja necessitando.
O sistema educacional que, em termos gerais, apresenta-se
deficiente em todo país, no meio rural em todo o Amazonas, onde
o fator distância geográfica é acentuado, fica mais
deficitário ainda. É pouco o número de escolas
funcionando no Parque e este é um dos motivos que mais leva os
moradores a formarem as comunidades. A participação das
crianças na escola é um fator problemático, pois
os filhos contribuem nas atividades laborais, uma vez que a agricultura
e o extrativismo contam com a mão de obra familiar (Oliveira
1999). O sistema de saúde, assim como o sistema educacional,
apresenta problemas: o hospital mais próximo está na cidade
de Novo Airão. Em função desta realidade, os moradores
buscam alternativas nos conhecimentos tradicionais, no uso das ervas
medicinais de que dispõe a floresta, na reza do rezador, nas
mãos sábia da parteira, ou mesmo na orientação
do padre e do pastor. O conhecimento das atividades de subsistência, como
a agricultura e o extrativismo, também foi e continua sendo transmitido
às novas gerações. Os habitantes do PNJ buscam,
nestas atividades laborais, a sobrevivência dos grupos domésticos,
como faziam seus antepassados. As atividades extrativistas exercidas pelos habitantes
do Jaú representam parte de sua base econômica, onde o
material extraído da fauna, da flora e da produção
agrícola é comercializado pelo sistema de aviamento 4,
como bem define a FVA (1999a): Além do extrativismo vegetal e animal, os moradores
do Jaú utilizam, como fonte de renda e de alimento, a agricultura
familiar. Usam, para tal, o sistema de pousio 5
que é um sistema característico das populações
tradicionais do Amazonas e das unidades de produção familiar,
onde a área de cultivo agrícola é regionalmente
conhecida como roça. Pereira (1994) diz que o sistema de pousio
garante a integração ecológica sustentável
entre as atividades de roça e o uso dos recursos florestais,
pois a prática empregada neste sistema é a de rotação,
na qual os períodos de cultivo são alternados, conforme
a disponibilidade da área. Os produtores encontram várias dificuldades na
hora de escoar a produção agrícola, sendo as mais
comuns a questão da distância em relação
ao mercado consumidor e a falta de condições para transportar
a mercadoria. Em função dessa problemática, vêem-se
obrigados a entregar seus produtos aos aviadores prática que
persiste desde o tempo do colonialismo. Este tipo de negociação
é marcada pela dependência financeira do produtor (Oliveira
1999 e Jesus 1999). Esta população enfrenta problemas
como todas as pequenas populações dispostas pelo interior
do Amazonas. Foi com essa população que esta pesquisa
foi realizada, buscando entender as relações de gênero
e as representações de meio ambiente que permeia seu cotidiano.
Para tal, buscou aporte no Método Etnográfico realizando
entrevistas com pessoas de três gerações. Entrevistas
que foram consideradas como depoimentos e histórias de vida. A pesquisa foi desenvolvida em duas comunidades do Parque: Seringalzinho, no rio Jaú e Tapiíra no rio Unini. Em ambas, as entrevistas foram realizadas com homens e mulheres de diferentes gerações. As relações de gênero no Jaú: Pretende-se analisar as questões de gênero
dentro da perspectiva,em que homens e mulheres são atores sociais
que constróem suas histórias, mesmo que limitados pelas
difíceis situações de subsistência a que
estão submetidos. Histórias onde as relações
são baseadas nas hierarquias, nos jogos de poder, nos estereótipos
masculinos e femininos próprios de cada sociedade, mas onde os
sujeitos fazem escolhas, buscam alternativas, usam estratégias
para satisfazer desejos e para atingir objetivos. Algumas pesquisas lidas, mais especificamente aquelas
que tratam das questões de gênero no meio rural, mostram
a divisão sexual do trabalho onde as atividades que requerem
considerada força física, como as derrubadas das matas,
a capina, a extração do látex e dos cipós,
são atribuídas aos homens, enquanto às mulheres
se destinam os serviços mais próximos da unidade doméstica,
como o cuidado com os animais de pequeno porte, a limpeza e cuidado
da casa, da família e da horta, serviços considerados
leves nas representações dos trabalhadores/as. A participação
das mulheres e das crianças na roça é considerada
como uma ajuda aos serviços do pai, do marido. Nos trabalhos de Lago (1983) e Welter (1999) foi ressaltado
que os afazeres domésticos não eram considerados trabalho
pelos sujeitos e, muitas vezes, quando se pergunta a uma mulher se ela
trabalha, ela geralmente diz que não, que só cuida da
casa, ou diz que só ajuda. Dificilmente coloca os serviços
que realiza na roça ou na mata como um trabalho. Os informantes
consideram trabalho, em geral, as atividades que geram renda. Wortamnn (1996) e Wolff (1999 e 1998) ressaltam que, nos
seringais do Acre, o trabalho se divide em dois campos: a mata, lugar
tipicamente masculino, a casa e seus arredores, lugar tipicamente feminino.
Franco (1997) enfatiza, no entanto, que há uma mobilidade muito
grande na execução das tarefas do dia-a-dia, principalmente
quando a família é composta por um número maior
de mulheres. Oliveira e Anderson (1999) apontam algo semelhante. Na
aplicação de um questionário cujo objetivo era
realizar o censo e fazer um levantamento sócio-econômico
dos habitantes do PNJ, elas observaram que a equipe era sempre recebida
pelo "chefe" da casa, o "homem". Era este que respondia
as perguntas (com exceção daquelas famílias em
que a mulher era viúva ou não tinha um companheiro que
se dispunha a recebê-las). Quando o assunto era a comercialização
dos produtos, ficava nítido ser este um campo exclusivamente
masculino. Essas autoras ressaltam que, com relação ao
uso dos recursos naturais, há uma diferenciação
por gênero, porém, quando as questões diziam respeito
à constituição da família, número
de filhos, idade, escolaridade, alimentação, os homens
consultavam as mulheres. Quanto aos homens, com exceção dos que não
têm esposa, nenhum mencionou realizar qualquer serviço
doméstico, porém isso não significa que vez por
outra não os façam. Essa participação nos trabalhos de casa
e da roça foi freqüente na fala dos meninos, daqueles que
foram considerados como terceira geração, porém,
quando se referem à aprendizagem desses serviços surge
uma diferença: os serviços da roça e o da pesca,
foram aprendidos com o pai; os serviços do lar foram ensinados
pela mãe, permanecendo a oposição entre o dentro
e o fora. Segundo Heilborn (1994), a socialização
de meninas e meninos segue a lógica da divisão sexual
do trabalho, que se constrói baseada na divisão binária,
onde as contribuições de meninas e meninos nos afazeres
domésticos são ordenados conforme o sexo. Para as meninas
logo cedo é ensinado que os serviços da casa são
de sua responsabilidade; quanto aos meninos, eles podem ajudar nas tarefas
domésticas, mas não são obrigados. A análise
de Heilborn foi com camadas médias no Rio de Janeiro, uma realidade
adiversa à do Jaú, mas em relação a essa
divisão sexual do trabalho, não há muita diferença.
No Jaú, os meninos, em geral, não são obrigados
a realizar os serviços domésticos, com exceção
de alguns que a mãe obriga, ou dos que não têm mãe
e moram só com o pai. A divisão que envolve o trabalho também
é pertinente à caça e à pesca, porém
ela é menos acentuada do que em determinadas comunidades camponesas
e pesqueiras do Brasil. Na Ilha de Santa Catarina, por exemplo, não
é comum a mulher pescar, como pode se observar nos trabalhos
de Lago (1983, 1996), Maluf (1993) e Rial (1988), onde a pescaria aparece
como atividade tipicamente masculina. Os estudos realizados na região
Amazônica apontam a participação da mulher tanto
na caça como na pesca, sendo que as técnicas usadas são
diferentes. Homens geralmente caçam animais de grande porte com
armas de fogo, pescam com arcos e flechas, arpões e caniços;
mulheres utilizam na pescaria apenas caniços e, com raras exceções,
usam flechas. Dificilmente praticam a caça mas, quando isso acontece,
em geral não usam armas de fogo, contam com a ajuda dos cachorros,
ou levam um filho para que esse atire por elas. Wortamnn (1976) diz que a produção econômica camponesa sem o apoio da mão de obra familiar torna-se inviável. No caso do Jaú, percebe-se isso com relação a qualquer atividade, sejam realizadas por mulheres, homens ou crianças, estejam relacionadas à caça, à pesca, ao extrativismo ou à roça - todos os serviços dependem do esforço conjunto. As representações de meio ambiente: De um modo geral, os informantes representam o meio ambiente
de forma naturalista, antropocêntrica e relacional, conforme as
categorias pensadas por Reigota (1997) e da Matta. Representam de forma
naturalista quando, em suas falas, o ser humano aparece nas relações
de forma dissonante: é aquele que depreda, que, se não
acaba, faz com que os recursos naturais, a caça, o peixe, "diminua,
fique arisco". Outro ponto que pode ser observado nas falas apontando
para essa visão naturalista, é quando pensam que parque
mesmo é um local desabitado porque o homem/mulher nesses espaços
são prejudiciais. São aqueles/as que "fazem vida
com os bichos de vida". Coisa inconcebível, é
como se a natureza tivesse vontade própria, e quando não
se respeita essa vontade, vêm as conseqüências. É
comum na fala dos moradores eles dizerem que amam a natureza pois sem
ela não teriam, luz, sol, chuva, calor e que sem isso não
poderiam viver. Dizem que gostam de morar ali porque não tem
poluição e que tem muito medo daquele local acabar. Neste
pensamento a natureza aparece como algo que se mantém sozinha,
e o homem/mulher vai destruir esse mundo, que aparece meio como encantado. Outra visão muito comum de natureza entre os moradores
do PNJ é a visão antropocêntrica, onde o pensamento
manifestado é de que eles podem explorar os recursos, pois são
moradores/as do local. Nessa visão, os recursos naturais existem
para suprir as necessidades do grupo, e se falam de preservação
é porque a consideram como necessária à manutenção
de sua subsistência. Ao grupo é permitido caçar,
pescar etc., e os recursos são usados em seu benefício. Acredito que para os informantes é difícil
sair dessa visão naturalista, antropocêntrica e relacional
para uma mais abrangente. Eles/as não conseguem perceber toda
a complexidade das relações e vêem que o que consideram
problema não será solucionado com a simples implantação
de leis que venham proteger a fauna e a flora local. Apesar de reclamarem
dos que vêm de fora para depredar o ambiente natural, não
percebem nas suas próprias ações, como as de jogar
lixo no rio (resposta que muitos deram quando questionados sobre o que
faziam com o lixo), que eles também estão contribuindo
para a devastação. É claro que não podemos
comparar suas ações e os danos que elas causam, com os
danos causados pelos geleiros 6,
piabeiros 7 e outros que entram
nos rios com um único intuito, o de explorar os recursos naturais
até sua exaustão. Mas é interessante notar que
apesar de determinadas práticas, essa população
luta contra aqueles que buscam a satisfação de suas necessidades
econômicas extraindo a flora e a fauna e que não têm
nenhum vínculo com o local. Preservar sem dúvida alguma
é necessário, porém é preciso ver a que
e a quem vai servir essa preservação. Referências bibliográficas AGARWAL, B. (1992). "The gender and environment debate:
lessons from India." Feminist Studies. 18(1): Spring. 1 Pesquisadora-técnica da Fundação Vitória Amazônica. Coodenadoria Sócio-ambiental. Rua: R/S; Quadra Q: casa 7; Conj. Morada do Sol - Aleixo. CEP: 69060-80. Manaus/AM. E-mail jasy@fva.org.br 2 Technical Researcher and Socio-environmental Coordinator at the Vitória Amazônica Foundation. Rua: R/S; Quadra Q: casa 7; Conj. Morada do Sol - Aleixo. CEP: 69060-80. Manaus/AM. E-mail jasy@fva.org.br 3 Ajuri e mutirão são trabalhos realizados coletivamente, porém no ajuri, geralmente praticado nos trabalhos particulares, como construção de uma casa, quem convoca para o trabalho arca com as refeições para o grupo. 4 Cada seringueiro
possuía um patrão a quem entregava sua produção
e de quem recebia o equivalente em mercadorias industrializadas. Tal
relação era extremamente desfavorável ao seringueiro,
pois como o preço do produto sempre era inferior ao da mercadoria,
o seringueiro sempre estava devendo ao patrão, o que o colocava
numa situação de semi-escravidão. 5 Segundo o Plano de Manejo do PNJ, o sistema de aviamento tradicional desenvolveu-se no ciclo da borracha, sistema de pousio - sistema no qual os agricultores trabalham com dois ou mais campos: enquanto um produz, o(s) outro(s) se recupera (m) do desgaste causado pelo plantio anterior. 6 Barcos pesqueiros que pescam no local para abastecer os centros urbanos. 7 Barcos que pescam peixes ornamentais principalmente para exportação.
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