O Sistema Brasileiro de Atendimento à Saúde Indígena e algumas de suas Implicações na Cultura Yanomami.

Victor Py-Daniel *
Fabiana dos Santos e Souza **

"Além disso, tais investigações assumem ainda mais elevado interesse, se consideramos que os primitivos brasilíncolas serão lançados no grande remoinho social e civil, de onde, mais cedo ou mais tarde, surgirá uma população remodelada e quase nova - a do Império Brasileiro; que nesse torvelinhar eles hão de perder, a mais e mais, suas características próprias e, finalmente, se extinguirão por completo, como membros independentes da grande família humana - conforme parece ter determinado o Espírito Universal. " ( Von Martius, 1844)

RESUMO

São apresentadas algumas interpretações, ansiedades e fatos que propiciam transformações na cultura Yanomami por meio do modelo de Sistema Brasileiro de Atendimento à Saúde Indígena. Será que ainda poderemos apropriar este sistema ?

Palavras-Chaves : Yanomami, Saúde, Transformações Culturais.


O Contexto

A Área Indígena Yanomami (que inclui também a etnia Ye`kuana) está constituída de 96.649 km2 , sendo 38.723 km2 no Estado do Amazonas e 57.926 km2 no Estado de Roraima.

Segundo o último censo (FUNASA / DSEIY-RR, 2001) elaborado para setembro , esta área possui uma população de 12.767 individuos (12.401 indivíduos Yanomami e 366 Ye´kuana), estando 4.774 no Amazonas (em 47 aldeias) e 7.993 em Roraima (em 173 aldeias).

A densidade demográfica total é extremamente baixa (0,13 hab/km2). Enquanto Roraima apresenta um índice demográfico igual ao total da área, no Amazonas ocorre ainda uma pequena redução (0,12 hab/km2).


Toda a Área Indígena Yanomami, no Brasil, está localizada na macro-bacia
hidrográfica do Rio Negro. Enquanto que em Roraima a maior concentração de indivíduos ocorre na sub-bacia do rio Uraricoera, secundada pelas sub-bacias dos rios Mucajaí e Catrimani, no estado do Amazonas as comunidades estão mais isoladas e concentradas nas sub-bacias dos rios Cauaboris, Demeni, Marauiá e Padauari.

As proporções diferenciais nos estados do Amazonas e Roraima no que se refere à área ocupada / número de indivíduos e número de aldeias (AM = 1 / 0,13 / 0,001; RR = 1 / 0,12 / 0,002) demonstram nitidamente (como já assinalou Py-Daniel, 1997) que ocorre no estado do Amazonas uma maior concentração de individuos em um menor número de aldeias, o que disponibiliza ainda mais o número de áreas desocupadas, ou seja, ao nível epidemiológico as endemias apresentam uma dispersão muito mais lenta (no que tange à área total) do que no estado de Roraima, aonde as comunidades apresentam uma maior contigüidade.

Atualmente, além da FUNASA, existem 7 entidades conveniadas (com o Ministério da Saúde) como responsáveis pelas ações de sáude na área Yanomami : URIHI (AM/RR), DioRR(RR), MNTB (AM), MEVA (RR), MDM (RR), IDS (AM) e SECOYA (AM), sendo que a URIHI é a que atende proporcionalmente tanto a maior área como o maior número de indivíduos.


O Contato

Excetuando-se as missões religiosas, os contatos dos Yanomami localizados nas cabeceiras dos rios (ou seja, que estavam mais isolados), em sua maior parte foram feitos, na decada de 80, com um determinado tipo de napë : o garimpeiro.

Nesta época ficou nitidamente caracterizado o que Santos & Coimbra Jr. (1994) descreveram, em geral, para as populações indígenas amazônicas : "Dentre as conseqüências imediatas do contato estão a redução demográfica por epidemias de doenças infecciosas, a alteração de indicadores demográficos (eg., taxas de natalidade e de mortalidade) e o comprometimento das atividades de subsistência."

Como os Yanomami apresentam uma característica singular de não falarem dos seus mortos, aparentementemente, para quem chega agora para trabalhar , entre eles, na área de saúde, a visibilidade do contexto histórico fica pouco nítida.
Está tudo bom e melhorando !!!!

Por mais que eles não falem dos seus mortos, o exemplo do grande número de desaparecidos, na época do garimpo, serve como lembrança permanente, entre os mais velhos, para que as comunidades aceitem, com mais facilidade, as propostas para tratamentos / prevenções (vacinas) das doenças com origem na presença dos napëpë (plural de napë = não Yanomami).

Isto, portanto, é o início de "tudo"........


Aceitabilidade do nosso sistema médico por parte dos Yanomami


Pellegrini (1993), imbuído de um sentimento extremamente próximo aos Yanomami, escreve : " O nabè (= napë) tinha vários caroços e líquidos que aliviavam os desconfortos.... Furava as pessoas com agulhas e lhes empurrava na carne, com muita dor e esforço, o líquido branco e valente que ele chama de penicilina. Pelo estado em que se encontravam, as pessoas eram obrigadas a gostar."

Conklin (1994), ao se referir às populações indígenas em geral cita : " O grau de receptividade à medicina ocidental depende destes conceitos e das práticas estranhas não serem antagônicas às noções sobre o corpo humano, sobre causa e prevenção das doenças e às relações sociais que cercam a doença. O fornecimento de serviços médicos será insuficiente para garantir um sistema de saúde eficaz caso não sejam equacionados os conflitos e equívocos existentes entre os conceitos ocidentais e indígenas de saúde e doença."

Os Yanomami, em comunidades mais isoladas, para aceitarem o nosso sistema médico necessitam primeiro terem confiança em quem está disponibilizando tanto alimentação como remédios, pois mesmo já tendo bastante contato com tal pessoa, antes de ingerirem ou receberem os medicamentos é comum fazerem uma pergunta : - Morrer não ?

Esta pergunta é feita seguida de um comportamento complementar, quase obrigatório : a ação de olho no olho.

Se a boca do napë diz que podem comer ou beber mas eles não conseguirem sentir o mesmo, na comunicação olho/olho, ou seja não apresentar uma complementariedade ao que é dito, eles simplesmente não bebem/comem. É como uma contra-senha. Não correspondendo eles não dão continuidade à ação.

A aceitabilidade da "nossa medicina" está, portanto, muito mais associada à confiança entre os interlocutores do que na crença da possível cura.

Se o napë não curar, os Yanomami se reservam o direito de fazerem os seus sistemas de cura posteriormente. Se os seus sistemas de cura não funcionarem, por alguma razão (para qual sempre existe uma explicação - seja mitológica, relacional, etc...), eles voltam para o napë, mas já considerando o necessitado como um caso perdido.....

Esta dinâmica nas ações, aos poucos permite (?) mais credibilidade para a medicina ocidental, mas ao mesmo tempo estimula (quanto mais frequente fôr) a deixarem por conta dos napëpë os processos de cura. Já que eles estão lá para isto mesmo !!!!

Aqui, então, começa a maior parte da história e com isto já sabemos aonde isto vai dar.........................

O Lado "Bom"

O Dilema do Híbrido

Ou Pessoas ou Cultura ?????

O Sistema de Saúde, na realidade apresenta uma nova remodelagem tanto de valores como dos agrupamentos dentro da área de cada Polo, e estas "modificações estruturais" vão influenciar diretamente, no mínimo, nos relacionamentos e agrupamentos para assistência de saúde.

Esta proposta de assistência de saúde altera, ou seja, diminui, a movimentação natural dos grupos (mais uma trava ao semi-nomadismo).

Vai dar certo ?

Na realidade é uma reestruturação social. Uma remodelagem semelhante à municipalização de saúde.

Uma melhora da saúde em comprometimento do sistema social !!!!

O dilema : ou são fornecidas melhores condições à saúde com isto possibilitando ter mais pessoas para fortificar o grupo Yanomami (objetivo inicial centrado nas pessoas), ou deixa-se os Yanomami com os seus sistemas social/sanitário (objetivo inicial centrado no estado cultural).

Este objetivo que possibilita mais a visão cultural está sujeito a auxiliar na diminuição drástica (pelo próprio conjunto de fatores gerados pela cultura dos napëpë) no número de pessoas.

Para que exista uma Cultura é obrigatório que antes existam Pessoas !!!!

Assim, objetivando inicialmente a previlegiar a Cultura estaria na realidade direcionando a sua possível extinção.!!!????

A "proposta/expectativa" é que venha a ocorrer um híbrido, portanto, primeiro preservar as pessoas e fazê-las aumentar, torcendo para que o "melhor" (deles/para eles) consiga sobreviver e assim seus valores (em suas dimensões) possam, um dia, prevalecer (voltar a).

Que "sinuca de bico" !!!!!

Primeiro o Ser Humano, no momento, pois as "possíveis" pressões externas da civilização circundante dos napëpë são uma realidade.

As ações de saúde têm a intensão de fortificar o interno para que com isto, possa existir (futuramente !!!) uma expansão do híbrido .....


A ruptura social

Black, F. (1994) comentando sobre o impacto das doenças introduzidas na estrutura social : " .... A partir destes exemplos fica claro que a estrutura social indígena não foi capaz de prover cuidados básicos aos doentes, possivelmente porque muitos adoeceram ao mesmo tempo. Com base na experiência Yanomami, James Neel apontou para o processo de ruptura social durante as epidemias como uma causa para a maior suscetibilidade dos ameríndios às doenças infecciosas. De fato, nos exemplos mencionados acima, é plausível que a ruptura tenha sido responsável por, pelo menos, metade dos óbitos."

Com base nisto podemos encarar que as ações de saúde programadas e desenvolvidas junto aos Yanomami, visam evitar que possam aumentar o número de óbitos, assim diminuindo as possibilidades de ruptura social.

As ações de saúde podem transformar as relações sociais, mas evitam as rupturas !!!!!!

Até que profundidade estas transformações culturais podem ser interpretadas como uma não ruptura social ?

O Lado possivelmente "Não Muito Bom"


O Sistema de Pólo Base


Definição dada pela FUNASA : Pólo Base de Operação, local aonde se chega, tem pista para avião e geralmente tem um pequeno posto de saúde e/ou base da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) (Py-Daniel, 1997).

Atualmente o Pólo Base está mais relacionado com a saúde, do que com a existência de um PI (Posto Indígena).

Um Pólo não têm uma área geográfica definida, mas sim está caracterizado pelo atendimento a indivíduos/comunidades.

Esta característica não geográfica de um Pólo determina fatores singulares como :

1. - Uma comunidade que esteja sendo atendida, ao nivel de saúde, por um determinado Pólo, ao se movimentar alguns quilômetros e seus membros resolverem procurar o atendimento em outro Pólo, pode determinar que esta comunidade (também a área geográfica) passe a estar sob a responsabilidade de outros napëpë . Mesmo áreas contíguas podem ser gerenciadas por instituições diferentes, e isto altera a relação dos censos fornecendo inclusive implicações "administrativas & monetárias".
Estas mudanças de atendimento, muitas vezes podem ser, simplesmente,
resultados das modificações nas relações entre as comunidades (p.ex. :
brigas).

2. - Comunidades que apresentem algum agravo e que estejam localizadas em um determinado Pólo, ao se movimentarem para outro Pólo, podem modificar totalmente os índices endêmicos de ambos os Pólos (p.ex : o que acontece com a oncocercose).

3. - Com a ATUAL criação de um sistema de Conselhos de Saúde (Conselho Distrital, Conselho Local, Conselhos Locais) e "Agentes de Saúde", dentro das comunidades, réplica da municipalização da saúde na nossa sociedade, ocorre definitivamente uma transformação nas relações de autoridade :

3.1. - Alguns indivíduos, normalmente entre os mais jovens, passam a representar as comunidades junto aos napëpë (ao nível de saúde) independente das relações sociais internas com os Tuxauas (Chefes) e com os Xapores (curadores), ou seja, eles passam a assumir uma parcela de autoridade (inclusive com acessos diferenciados aos napëpë - em reuniões dentro e fora da área Yanomami, que lhes permite usufruir de "bens" que possam ser introduzidos nas comunidades). São criados, portanto, representantes dos napëpë dentro de cada comunidade. Isto também acontece em relação à educação, aonde cada comunidade passa a ter o professor, que também recebe as instruções dos napëpë.

As relações originais da hierarquia social ficam definitivamente transformadas !!!


O Centro Atrativo e Comercial !!!!!

O que pode significar a presença de um posto de sáude e/ou base da FUNAI na área Yanomami ?

Normalmente a presença de um posto de saúde e/ou uma base da FUNAI (PI) determina que seja criada uma área geográfica de interesse para obtenção de itens de troca (machados, facas, facões, linhas,etc...) ou na aquisição de apoio de saúde para os indivíduos que assim necessitarem (principalmente para tratamentos de malária e diarréias).

Santos & Coimbra Jr. (1994) em uma visão relacionada aos Tupí-Mondé já ressaltam processos extremamente semelhantes : "Tradicionalmente vivendo em pequenos assentamentos, com o tempo passaram a viver em aldeias cada vez maiores, situadas próximas aos postos da FUNAI, processo que se associa a uma crescente pressão sobre os recursos naturais já não passíveis de ser aliviado devido à redução da mobilidade."

Mais adiante, em aspectos gerais com as comunidades indígenas, estes mesmos autores descrevem processos que cabem nitidamente ao que está acontecendo no momento entre os Yanomami : " à medida que prosseguem os trabalhos de aproximação, a população indígena tende a abandonar seus assentamentos e a mudar-se para perto dos postos de atração, onde a distribuição de bens continua por algum tempo, juntamente com o fornecimento de gêneros alimentícios e remédios".

Entre os Yanomami, como conseqüência desta contínua presença física dos napëpë, ocorre a aproximação e ocupação do entorno por alguma das comunidades da região, mas muitas vezes a construção inicial tanto do posto de saúde como do PI já é feita próxima à alguma comunidade pré-existente no local.

Esta comunidade estabelecida no entorno dos napëpë configura uma porta de entrada para que outras comunidades "amigas" possam também chegar.

Como os seus membros "conhecem" mais os napëpë residentes, assim passam as informações necessárias para que os visitantes possam obter, com mais eficiência, os objetos de suas solicitações.

Em alguns casos, estas comunidades podem apresentar um "zelo excessivo" por sua posição geográfica, fazendo com que as outras comunidades, tenham que, direta ou indiretamente, declarar as suas intenções e aquisições junto aos napëpë, ou seja, passando a exercer um controle das relações, culminando com que a comunidade circundante aos napëpë possa até exercer uma atividade seletiva no acesso aos mesmos, impedindo assim que outras comunidades "que no momento não estão amigas" possam desfrutar tanto dos itens de troca como dos atendimentos de saúde.

Como os napëpë normalmente constroem casas que não estão ligadas com a transitoriedade dos fatores ambientais e com a exploração dos recursos locais (pois, em sua maioria, recebem os seus alimentos procedentes de fora da área Yanomami), não necessitam periodicamente mudar de lugar.

Este sistema menos dinâmico e interativo dos napëpë e a relação dos individuos Yanomami com as necessidades "criadas" dos utensilios e da saúde, faz com que eles venham a gravitar no entorno dos postos por muito mais tempo, assumindo assim relação de constância.

Esta relação de constância que por conseqüência pode gerar dependência (e mudanças nas relaçôes dos valores culturais) faz com que eles diminuam a sua mobilidade.


O sistema de "trocas" e suas transformações etno-espaciais

Os Yanomami não apresentam uma possessividade prolongada em relação aos objetos que os cercam, principalmente porque dentro dos seus seguimentos mitológicos não lhes é permitido serem "sovinas", ou seja, é quase impossível negarem um pedido. Assim, um objeto que algum "napë" possa dar aos mesmos, em questão de uma semana pode ser localizado a uma distãncia de 30-40 quilômetros (da introdução de origem).

Isto ocorre pelo simples sistema de trocas sucessivas entre indivíduos de comunidades diferentes e/ou apenas a doação (sob pedido) do mesmo entre parentes/amigos, e/ou pelo sistema social de festas com distribuição de objetos para os visitantes.

Assim, quase todas as introduções (panelas, linhas, anzóis, etc...) feitas pelos membros dos postos de saúde e/ou postos indígenas (PI) apresentam um grande deslocamento dentro da área.

Cada vez mais esta mobilidade dos materiais introduzidos se torna mais ativa do que a mobilidade dos grupos em si.


Diminuição acentuada da mobilidade

Citando Coimbra Jr. & Santos (1994) : " Os estudos etnográficos apontam a alta moblidade como uma característica comum à maioria dos grupos indígenas da região amazônica vivendo sob condições tradicionais. Os antropólogos tendem a interpretar a alta mobilidade destas populações como um mecanismo adaptativo para fazer frente às pressões de determinadas características ambientais, quais sejam : a)declínio da fertilidade dos solos após plantios repetidos; b) invasão das plantações por ervas daninhas e c) rarefação da caça próximo às aldeias. Outros autores também mencionam as lutas intertribais; a existência de muitas sepulturas no subsolo das malocas; a morte de um chefe; a proliferação de baratas; e o excesso de formigueiros nas cercanias das aldeias, como motivos para a mudança da aldeia. Do ponto de vista epidemiológico a acentuada mobilidade das populações indigenas pode funcionar como fator de proteção contra excessiva contaminação ambiental por formas infectantes de parasitas intestinais e enterobacterias."

Também em Coimbra Jr. e & Santos (op.cit.) : "Entre os grupos indígenas da região amazônica, a mobilidade está rapidamente sendo abandonada em associação com a aculturação e com a redução dos territórios tribais. Infelizmente, as conseqüências de tais mudanças socioculturais e ecológicas não têm sido devidamente acompanhadas por cientistas sociais e especialistas em saúde.".


Mobilidade Yanomami & Recursos & Saúde

1. - Os recursos obtidos por meio de caça e coleta

A fixação (aumento do tempo na ocupação do mesmo lugar) de uma comunidade em volta do posto (saúde e/ou PI) faz com que sejam ultrapassados, em muito, os 3-4 anos com que as mesmas, normalmente, fazem as suas mudanças territoriais. Isto determina que ocorra uma maior concentração temporal nas atividades de caça e coleta numa mesma área, reduzindo assim a disponibilidade dos itens extraídos da natureza.

Cada vez mais eles podem necessitar irem mais longe para obtenção destes itens de caça e coleta.


2. - Os recursos obtidos por meio das roças

A utilização dos recursos originários de uma determinada roça, normalmente, é menor (2 anos) que a transitoriedade de uma comunidade (3-4 anos) em uma determinada área.

Com a fixação de uma comunidade e a diminuição da disponibilidade dos recursos de caça e coleta, ocorre como conseqüência a necessidade de serem implementados os recursos originários por meio dos plantios (muitas variedades de banana, algumas de macaxeira, mamão, milho, cana, etc...), ou seja, começam a surgir no entorno, cada vez mais, áreas desmatadas para novas roças.

Estes desmatamentos crescentes também projetam as áreas de coleta e caças para cada vez mais longe (isto não exclui que as roças possam servir como fontes atrativas para algum tipo de caça, mas que proporcionalmente não representam grandes acréscimos alimentares).

Estes acréscimos de áreas desmatadas, mesmo que venham a sofrer uma utilização reduzida (2-3 anos) para a maioria dos seus itens (uma exceção de longa exploração é a pupunha) modificam substancialmente, cada vez mais áreas contíguas, caracterizando assim grandes áreas desmatadas, o que contraria nitidamente o uso original "apropriado", por parte dos Yanomami, de pequenas áreas que possam apresentar facil e rápida recuperação.

Esta macro-diferenciação influi nitidamente tanto o macroclima local como a própria relação das comunidades com a floresta que cada vez fica mais afastada de suas casas !!!!.


O "relaxamento" do Coletor

O aumento considerável de roças, com o intuito de não se movimentarem muito, e portanto com uma disponibilidade mais constante de alimento, no entorno das comunidades (principalmente nas que estão perto dos napëpë), faz com que muitos jovens já apresentem desinteresse em fazer longas caminhadas para coletarem na floresta (urihi), demonstrando assim um nítido processo de troca alimentar.

Ao serem perguntados sobre os seus ítens alimentares da floresta, muitas vezes ouvimos frases como: "- Esta fruta nós agora não comemos mais, só quem come são os Yanomami mais afastados, que não fazem roças".


O "conjunto" das comunidades


Como uma comunidade não está isolada, nem geograficamente, e nem em suas relações sociais no contexto aonde se encontra, por mais que esteja gravitando nas "facilidades" criadas pelos napëpë, seu estado, relativamente menos dinâmico também permite uma constante alteração das outras comunidades.

Comunidades/pessoas possuem relações de amizades/inimizades (independente dos parentescos) e isto, originalmente faziam, na ausência dos napëpë, com que os espaços geográficos entre as diferentes comunidades tivessem uma ocupação também temporariamente diferenciada, ou seja, muitas áreas poderiam permanecer desocupadas por um longo tempo, desde que não existissem relações inter-comunitárias que possibilitassem a ocupação das mesmas.

Com a existência dos "pontos de convergência" (as sedes do Pólos), começa a existir uma ocupação radial, em círculos concêntricos irregulares, ou seja, as comunidades indígenas vão chegando cada vez mais perto da "comunidade napë", respeitando no entanto as áreas de movimentação das outras comunidades.

Simbolicamente, é algo como o núcleo de um átomo (comunidade napë + comunidade Yanomami associada) circundado pelos elétrons em diferentes orbitais (as outras comunidades).

Nas comunidades mais distantes da região da fronteira com a Venezuela, este constante movimento de aproximação faz com que as áreas mais longe comecem a ficar progressivamente despovoadas.

Isto tem feito com que as áreas de coleta e caça fiquem localizadas em ambientes externos ao último nível (círculo), aonde as interferências / e domínios das comunidades de atendimento no Pólo ficam diluídas.

Nas comunidades próximas à fronteira com a Venezuela (p.exemplo : Pólos como Auaris, Xitei, Homoxi, Toototobi) as áreas vazias deixadas por este processo de aproximação para junto dos napëpë estão vagarosamente sendo ocupadas por populações vindas do território venezuelano.

Este movimento, que "nós consideramos", Venezuela=>Brasil geralmente está associado com a falta de atendimento médico por parte dos napëpë venezuelanos, principalmente junto às comunidades Yanomami localizadas nas cabeceiras do rio Orinoco.

Outro fator de ocupação destas áreas, muito mais recente, está associado à educação !!!!

Indivíduos de algumas comunidades provenientes do território venezuelano estão se deslocando para as áreas brasileiras (p.exemplo : Pólos Xitei, Toototobi) para aprenderem a escrever/ler o alfabeto fonético, ensinado pelos napëpë (membros de instituições OnGs e instituições religiosas).

Esta aproximação por meio da educação também está fazendo com que as comunidades localizadas na Venezuela se aproximem mais do território brasileiro ou até mesmo se transfiram para áreas do território brasileiro.

Como resultado deste movimento Venezuela=> Brasil, está ocorrendo um progressivo despovoamento da bacia do rio Orinoco.

Por processos históricos e/ou necessidades esta área poderá representar uma futura mega-área de coleta e caça. Mas isto não pode ser generalizado, pois exitem inimizades históricas entre diferentes grupos que no momento impossibilitam um uso indiscriminado desta área (de domínio dos xamathari; denominação dada pelos ocupantes do lado brasileiro aos do lado venezuelano).

Até esta antiga rivalidade, intrinsecamente inclusa na realidade diária está sendo repensada pelos Yanomami, tendo em vista principalmente as necessidades quanto aos aspectos de saúde, pois existem relatos, muito atuais, de que comunidades inteiras, ou a maior parte dos seus membros, que desapareceram por falta de atendimento médico {por exemplo : apenas alguns membros da ex-comunidade Tomokoxi (habitantes da calha superior do rio Orinoco) sobrevivem em Xitei e Toototobi, como resultante de surto de malária}.

Esta possibilidade de desaparecimento generalizado está fazendo com que algumas comunidades repensem tanto os seus espaços como as suas relações, passando assim a aceitar "melhor" as relativas diferenças internas dentro da cultura Yanomami.


Áreas Inter- Pólos


Como os Pólos não apresentam um limite geográfico e existe um nítido movimento das comunidades em se aproximarem das bases napëpë, ocorre que nas áreas intermediárias entre duas bases dos napëpë (ou seja, as sedes de diferentes Pólos) predomina uma diminuição gradual da população, resultanto até ausência da mesma.

Se observarmos a área Yanomami com um todo, veremos que na realidade estão sendo formados corredores despovoados nas áreas inter-pólos.

Mais uma réplica da nossa cultural : a municipalização !!! As fronteiras dos municípios são menos povoadas.

Estas áreas podem ser consideradas como reservas coletoras/caça até que as comunidades crescam o suficiente para que voltem a explorar estes recursos, como fonte final disponível, ou seja, um supermercado para o futuro.

Quanto tempo será necessário para que este futuro possa desempenhar o papel de último recurso natural para estas comunidades ?

Isto dependerá, principalmente da taxa de crescimento populacional dessa etnia.

Com base nos indicadores obtidos nos últimos 6 anos, aonde foi possível fazer um acompanhamento da saúde Yanomami (pela intervenção das ações sanitárias desenvolvidas diretamente pelo governo federal, ONGs e missões religiosas) podemos verificar a existência de altas taxas de natalidade acompanhadas de reduzidas taxas de óbitos, ou seja, em geral os Yanomami estão apresentando um elevado desenvolvimento populacional.

Como exemplo desta situação podemos citar que no Pólo Xitei as proporções entre óbitos/nascimentos, entre os anos 1995 a 2000 foram de : 1/4,2 (1995), 1/2,1 (1996), 1/4,3 (1997), 1/1,7 (1998), 1/12 (1999) e 1/11,1 (2000).

O Agente de Saúde e o Professor

A presença de um agente de saúde e de um professor em cada comunidade evita que eles tenham que se direcionar constantemente para a base do Pólo, pois, a princípios estes dois agentes dos direcionamentos napëpë devem gradualmente suprir as suas necessidades primárias.

Com o tempo, a princípio, eles DEVERIAM ficar mais independentes, mas isto apenas poderia ser uma realidade desde que os Yanomami passassem a fabricar o papel, o lápis, os possíveis livros, e os medicamentos (exceto os que já lhes são naturais - que são aplicados pelos Xapores).

O que deveria devolver às comunidades uma certa mobilidade, com o acréscimo de conhecimento (saúde/educação), na realidade fará com que estas fiquem, menos móveis, pois estão sujeitas a se atrelarem a mais estes bens materiais.


O Hospital "Ideal"


Na área Yanomami existe um hospital projetado e implantado pela FUNASA (então FNS) com o intuito de que o mesmo fosse uma base relativamente completa que poderia evitar os contínuos deslocamentos dos Yanomami para Boa Vista, tendo em vista que eles apresentavam características culturais bastante peculiares (principalmente isolamento) e assim poderia dominuir o contato com outras etnias (na casa do índio) e com os napëpë (na cidade).

Outras unidades semelhantes também foram projetadas mas não foram implantadas, tendo em vista os exemplos e experiências obtidas com a implantação do primeiro.

Histórico : Junto a este hospital está estabelecida uma comunidade Yanomami.

Esta comunidade assumiu a responsabilidade de selecionar quais grupos de Yanomami podem desfrutar dos serviços médicos, inviabilizando assim grande parte dos objetivos pelos quais o hospital foi implantado.

Grande parte dos Yanomami (do mesmo Pólo e de outros) continuaram sendo transferidos para Boa Vista.

Estas ações seletivas, por parte destes Yanomami, também são implementadas quanto às pessoas napëpë que trabalham no referido hospital.

Algumas vezes esta unidade hospitalar teve que ser fechada, e seus funcionários serem retirados .às pressas, sob ameaças de invasão e morte !!!!

Quem projetou o hospital e seus serviços provavelmente esqueceu-se que dentro da Área Indígena as regras entre as relações humanas e ambientais são outras.!!!!!

Atualmente o Pólo aonde está implantado este hospital foi subdividido em varios outros Pólos/sub-pólos (inclusive com a construção de pistas para avião e casas de apoio), tentando com isto prestar uma assistência igualitária para as comunidades excluídas do atendimento no hospital.

Uma solução !!!

Esta comunidade, que domina a área aonde os napëpë (Hospital, Pelotão do Exército, Posto da Polícia Federal, Posto Indígena da FUNAI) têm a presença, e para manter tal, eliminou o seu comportamento natural de semi-nomadismo.

As suas casas apresentam um aspecto de aproveitamento de "sobras de material" (lonas, madeiras,latas, etc...) dos napëpë !!!!

Uma parte dos seus membros ficam no entorno das "residências" dos napëpë no intuíto - constante - de obterem alimentação, roupa, etc..., como também pegarem o que eles consideram que devam pegar (e levar) !!!!!



A "quebra" da segurança curativa ou a introdução do limite curativo

Com a demonstração, cada vez mais repetida de que os "remédios" trazidos pelos napëpë são muito fortes, muitos Xapores (curandeiros) muitas vezes deixam de explorar em extensão e profundidade as suas capacidades em relação aos hekuras (espíritos que utilizam para determinar/auxiliar nas curas), fazendo assim com que suas funções, muitas vezes (pelos jovens) sejam até desconsideradas, pela constante disponibilidade das facilidades fornecidas pelos napëpë (por exemplo : posto de saúde).

Uma realidade disto pode ser demonstrada com a apresentação de um caso:

- Um jovem Xapore após participar de muitas sessões de cura de diferentes pessoas (inalando o Ya´kuana) ficou "meio" desorientado.
- Outros Xapores mais fortes passaram um dia tentando fazer com que o mesmo voltasse ao normal, mas não conseguiram o intento.

- Sendo assim, foram junto as missionárias e solicitaram para que uma delas chamasse o grande Xapore (Jesus) para curá-lo.
Importante dizer que estas missionárias apenas praticam a assistência de saúde e educação, e nunca desenvolvem, junto aos Yanomami, qualquer atividade religiosa.

- Por mais que os Yanomami tenham tido uma explicação "mitológica" do acontecido com o jovem Xapore, eles desistiram muito rapidamente de cura-lo.

- Como conseqüência, o jovem foi transferido para Boa Vista, e após algum tempo de descanso, longe de suas atividades de Xapore, o mesmo voltou completamente ao normal.

Os medicamentos dos napëpë, assim como também as curas ao nível espiritual passam a ter poderes superiores que a cultura Yanomami.

Com o tempo, isto está sujeito a ser mais um desestímulo para manter a continuidade cultural por meio dos jovens.!!!!!


O Finalmente !!!!!

Santos & Coimbra Jr (1994) escrevendo sobre os Tupí-Mondé (Gavião, Suruí e Zoró), localizados na região Sudoeste da Amazônia brasileira : " Estima-se que antes do contato, as aldeias eram constituídas por não mais do que 100-200 indivíduos, que viviam em grandes malocas habitadas por famílias extensas. Nesta época, predominava um padrão de vida seminômade : as aldeias eram relocadas de tempos em tempos, o que contribuía para compensar a diminuição da produtividade das roças e a rarefação dos recursos de caça e produtos silvestres nas circunvizinhaças."

Esta história continua se repetindo.

Estamos no início destas transformações dentro da cultura Yanomami, por mais que eles estejam aparentemente isolados, os estímulos diferenciados estão sendo fornecidos pela implantação do nosso sistema de saúde no interior de sua área indígena.

Langdon (1994) ao se referir aos indios Siona (da Colômbia) disse : " Já não é possível para os Siona se manterem autônomos em suas práticas tradicionais de subsistência (agricultura extensiva, complementada pela caça e coleta de plantas silvestres). "

Esta observação para os Siona poderá ser uma projeção para os Yanomami ?????
Sim !!!!
O que pode fortificar este pensamento vem do exemplo já fornecido pelas comunidades Yanomami que se localizam nos afluentes da margem esquerda do alto rio Negro.

Nesta região existem comunidades que foram se transformando, ao longo dos últimos 20 anos, pelos processos integrativos junto aos garimpos, aos acessos constantes às "grandes" cidades regionais, às trocas comerciais com os napëpë circundantes, e aos estímulos para participarem das atividades militares.

Mesmo estando com suas casas longe das cidades, eles já têm Associação representativa, já possuem acesso ao sistema telefônico, já desfrutam da energia elétrica, já dominam o uso de tratores, sendo o consumo de material alimentício proveniente dos napëpë acentuado.

Assim, estas comunidades já não se diferenciam muito do que foi citado anteriormente para os Siona !!!!!

Será que nossa diversidade comportamental, relativa a contatos interculturais, é tâo restrita ?????

Estamos repetindo os mesmos comportamentos desde os contatos iniciais entre as culturas indígenas da Américas e as culturas européias !!!!

Será que somos capazes de implementar um outro tipo de assistência de saúde, que pelo menos não seja um ESTÍMULO BÁSICO para transformar ACENTUADAMENTE a cultura Yanomami ?????

Depois deste texto ter sido escrito, foi disponibilizado para que um Yanomami, de 14 anos de idade, o lê-se. Suas palavras no final da leitura foram : - Muito triste ! Eles (os napëpë) não deveriam fazer isto .

Referências Bibliográficas


BLACK,F.L. 1994. Infecção, Mortalidade e Populações Indígenas : Homogeinidade Biológica Como Possível Razão para Tantas Mortes, 63-90 p. , in : Saúde & Povos Indígenas (Ricardo V. Santos & Carlos E.A. Coimbra Jr, organizadores), Editora Fiocruz, 251 p.

COIMBRA JR.,C.E.A. & SANTOS,R.V. 1994. Ocupação do Espaço, Demografia e epidemiologia na América do Sul: A Doença de Chagas entre as Populações Indígenas, 43-62 p., in : Saúde & Povos Indígenas (Ricardo V. Santos & Carlos E.A. Coimbra Jr, organizadores), Editora Fiocruz, 251 p.

CONKLIN,B.A. 1994. O Sistema Médico Wari´, 161-188 p. , in : Saúde & Povos Indígenas (Ricardo V. Santos & Carlos E.A. Coimbra Jr, organizadores), Editora Fiocruz, 251 p.

FUNASA / DSEIY-RR. 2001. Censo populacional Revisado e alterado em setembro de 2001. 8 páginas (manuscrito). Boa Vista, Roraima.

LANGDON,E.J. 1994. Representações de Doenças e Itinerário Terapêutico dos Siona da Amazônia Colombiana, 115-142 p., in : Saúde & Povos Indígenas (Ricardo V. Santos & Carlos E.A. Coimbra Jr, organizadores), Editora Fiocruz, 251 p.

PELLEGRINI,M.A. 1993. Wadubari. Editora Marco Zero, São Paulo, 132 p.

PY-DANIEL,V. 1997. Oncocercose, uma endemia focal no hemisfério norte da Amazônia, 111-155 p., in : Homem, Ambiente e Ecologia no Estado de Roraima (Barbosa,R.I. & Ferreira, E.J.G. & Castellón,E.G., editores). INPA. 630 p.

SANTOS, R.V. & COIMBRA JR,C.E.A. 1994. Contato, Mudanças Socioeconômicas e a Bioantropologia dos Tupí-Mondé da Amazônia Brasileira, 189-212 p. , in : Saúde & Povos Indígenas (Ricardo V. Santos & Carlos E.A. Coimbra Jr, organizadores), Editora Fiocruz, 251 p.

VON MARTIUS, K.F.P. 1844. Natureza, doenças, medicina e remédios dos índios brasileiros, (2a. Edição, 1979), São Paulo, Ed. Nacional (Brasiliana; vol. 154), 183 p.

* Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, Coordenação de Pesquisas em Ciências da Saúde, Laboratório de Filarioses e Vetores, C.Postal 478, 69011-970, Manaus, Amazonas, Brasil. (e-mail : pydaniel@inpa.gov.br)
** INPA / Divisão de Pós-Graduação / Curso de Ecologia
Toda a Área Indígena Yanomami, no Brasil, está localizada na macro-bacia
hidrográfica do Rio Negro. Enquanto que em Roraima a maior concentração de