ETNOCONHECIMENTO E EDUCAÇÃO DE
TRABALHADORES/AS NA AMAZÔNIA 1
LIMA, ANTÔNIO ALMERICO BIONDI 2
Instituição: Núcleo Trabalho e Educação
da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia
(NUTE/FACED/UFBA)
Endereço : Vale do Canela s/n, Salvador, Bahia, Brasil - CEP –40000-000
RESUMO
A intervenção recente das organizações de
trabalhadores amazônicos no campo da Educação tem
se concretizado em experiências envolvendo educação
básica, profissional e sociopolítica, tendo como sujeitos
trabalhadores/as rurais e urbanos. Tais experiências, que se configuram
como espaços de desenvolvimento metodológico, exigem, para
sua interpretação e reelaboração, um esforço
teórico no sentido de incluir a “dimensão amazônica”
na análise, indo além das repetições e/ou
adaptações de teorias aplicadas a outros contextos nacionais
ou regionais. Nesta perspectiva, baseado na experiência vivenciada
-1998 a 2001- na elaboração e acompanhamento do Programa
Vento Norte da Central Única dos Trabalhadores (CUT), são
apresentadas reflexões a ser consideradas nos processos educacionais
baseados no etnoconhecimento dos trabalhadores/as na Amazônia: i)
categorias e noções básicas: trabalho, etnia, região,
gênero, geração, ação coletiva; ii)
processos: reprodução social, identidade/alteridade, etnoconservação,
educação; iii) saberes: saber, saber ser, saber fazer, saber
aprender e saber transformar; iv) princípios éticos: respeito
ao etnoconhecimento dos sujeitos e solidariedade; v) princípios
metodológicos: etnoconhecimento como ponto de partida; construção
do conhecimento e do currículo coletiva, processual e não
linear(teia). Conclui-se que a etnoconservação interessa
também a populações não-tradicionais, em especial
os coletivos de trabalhadores/as.
Palavras Chave: Trabalho, Educação de Jovens e Adultos,
Etnoconhecimento, Amazônia, Metodologia.
Key Words : Work Education, Young and Adults Education, Etnoknowledge,
Amazon, Education Methodology
1. Introdução
A intervenção recente das organizações de
trabalhadores amazônicos no campo da Educação tem
se concretizado em experiências envolvendo educação
básica, profissional e sociopolítica, tendo como sujeitos
trabalhadores/as rurais e urbanos. Tais experiências, que se configuram
como espaços de desenvolvimento metodológico, exigem, para
sua interpretação e reelaboração, um esforço
teórico no sentido de incluir a “dimensão amazônica”
na análise, indo além das repetições e/ou
adaptações de teorias aplicadas a outros contextos nacionais
ou regionais.
Nesta perspectiva, baseado na experiência vivenciada -1998 a 2001-
na elaboração e acompanhamento do Programa Vento Norte da
Central Única dos Trabalhadores (CUT), serão apresentadas
reflexões a ser consideradas nos processos educacionais baseados
no etnoconhecimento dos trabalhadores/as na Amazônia, envolvendo:
categorias e noções básicas; processos; saberes;
princípios éticos; princípios metodológicos.
Posteriormente, à guisa de conclusão, será problematizada
a efetividade social dos etnométodos em programas educacionais
de trabalhadores/as e o sentido da etnoconservação para
os coletivos de trabalhadores/as da Amazônia.
2. Educação e Etnoconhecimento
A Pedagogia, enquanto ciência da educação, tem incorporado,
no seu interior as polêmicas sobre conhecimento e verdade, que desafiaram
o reinado do positivismo. Há mais de 30 anos que o conhecimento
“oficial”, baseado no racionalismo cientificista, é
questionado pela Teoria Crítica da Educação pela
Nova Sociologia da Educação inglesa, e mais recentemente,
por educadores neomarxistas (Apple, Giroux, entre outros) além
de pós-modernos referenciados na obra de Michel Focault.
Não surpreende portanto, o reconhecimento, no exterior, da obra
de Paulo Freire e sua concepção da centralidade do conhecimento
popular na educação de jovens e adultos, caracterizada por
muitos como uma verdadeira antropologia da educação. Sem
dúvida, as pedagogias inspiradas no pensamento paulofreireano insistem
em partir do conhecimento do sujeito, obtido tanto de suas experiências
singulares quanto das suas vivências no coletivo, no que diz respeito,
à vida, ao trabalho e às lutas sociais. Assim, reconhecer
o etnoconhecimento, implica em reconhecer a especificidade das formas
de apropriação, ou seja de uma etnoaprendizagem, base para
uma Etnoeducação.
Mais recentemente, sob a influência do interacionismo simbólico
e da fenomenologia, emergiu fortemente na educação o debate
acerca da multireferencialidade, da etnometodologia e da etnopesquisa
crítica. Também se fortalece uma vertente multiculturalista
de inspiração neomarxista. Entretanto, tais discussões
somente se tornaram possíveis com a apropriação do
instrumental teórico-metodológico da antropologia. Apesar
da diversidade, todos estes referenciais confluem para um ponto comum:
o questionamento do conhecimento oficial com a única ciência
possível(cf. Macedo,2000).
Do ponto de vista prático, em tempos de “pensamento único”,
a adoção da perspectiva etnometodológica pode levar
a dois caminhos básicos: a um certo solipsismo metodológico,
apolítico e amorfo na sua singularidade (“a boa experiência
que deu certo”) ou ao questionamento de parâmetros e diretrizes
curriculares, pretensamente nacionais, que atropelam a diversidade cultural
do nosso país.
Deste modo, devem ser saudadas as experiências, pesquisas, programas,
ações que questionam a “macdonaldização”
(para usar o termo cunhado por Pablo Gentili) dos processos educacionais,
ou seja, a sua transformação em linhas de montagem de cidadãos–dentro-da-ordem.
A Pedagogia, indubitavelmente, tem muito o que aprender com a Antropologia,
a EtnoBiologia e a EtnoEcologia. Mas, como em todo processo dialógico,
também tem muito o que ensinar. O desafio da inter e da transdisciplinaridade,
do ponto de vista acadêmico, parece, por vezes, mais difícil
de superar que o abismo da falsa dicotomia “saber científico-saber
popular”. Oxalá possamos, neste artigo, contribuir para um
debate fecundo entre os diversos campos que escolheram o saber popular
e os sujeitos que o possuem como espaço da sua atuação.
3. Programa Vento Norte: trabalho, educação e desenvolvimento
na Amazônia
Na linha do questionamento dos currículos nacionais e com a intenção
de deflagrar a debate sobre a “questão amazônica”
no interior de uma central sindical, nasceu, em finais de 1998 o Programa
Regional de Desenvolvimento de Metodologias para a Qualificação
Profissional de Trabalhadores da Região Amazônica na perspectiva
do Desenvolvimento Sustentável e Solidário(Programa Vento
Norte), com o objetivo desenvolver processos educativos visando a elevação
da qualidade de vida de trabalhadores e trabalhadoras urbanos e rurais
dos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia
e Roraima.
Baseado na perspectiva do Desenvolvimento Sustentável e Solidário
(DSS), o Programa Vento Norte se alinhou na contribuição
para efetivar processos de geração de emprego e renda, aliados
á preservação social e cultural da população
amazônica. Nesta construção, ambicionou tratar, de
forma transversal e com a ênfase merecida, questões geralmente
negligenciadas, como meio ambiente, gênero, etnia e geração.
O Programa Vento Norte foi elaborado a partir da demanda dos/as próprios/as
trabalhadores/as, que sempre questionaram a transposição,
pura e simples, de experiências de outras regiões e reivindicavam
processos gestados e referenciados na cultura amazônica. Convencidos
de que não haverá um projeto nacional verdadeiramente popular,
se este não levar em consideração as diversidades
regionais, os trabalhadores amazônicos, organizados na Central Única
dos Trabalhadores(CUT), se lançaram à tarefa de construir
conhecimentos, perspectivas e ações solidamente baseadas
na região, sem que isto signifique isolamento ou redução
do horizonte político.
Financiado com recursos próprios e do Fundo de Amparo ao Trabalhador,
através de convênio nacional, o Programa Vento Norte se apresenta
como pioneiro no desenvolvimento de metodologias específicas para
a qualificação profissional na região amazônica
e vem complementar, sem se superpor, a outros programas da CUT nacional,
de natureza mais geral.
A coordenação política do programa é da CUT,
através das CUTs Estaduais dos referidos estados, enquanto que
a coordenação técnico-pedagógica está
sob a responsabilidade da Escola Sindical Amazônia e da Escola Sindical
Chico Mendes. Entretanto, como não tem como objetivo o monopólio
das construções metodológicas na região, o
programa procurou se vincular a outras experiências do campo popular
e acadêmico, na perspectiva de estabelecer parcerias duradouras
com instituições como INPA, FASE, UNITRABALHO, Universidade
do Amazonas, UFPA, entre outras.
Para atingir os seus objetivos, foram previstos, inicialmente, para a
execução do projeto, três anos(1999-2002), necessários
à deflagração, em várias frentes, do processo
de desenvolvimento metodológico e para a realização
de atividades, visando a validação das metodologias desenvolvidas.
Ao mesmo tempo, o Programa Vento Norte foi imaginado como um grande laboratório
de mobilização social pela educação na região
Amazônica, cujos resultados pretendem transcender os recursos oriundos
do FAT, alavancando novas fontes de financiamento públicas e privadas.
Dentre as principais áreas ocupacionais da Amazônia foram
escolhidas, para atuação em 1999, três, denominadas
significativamente Floresta (trabalhadores rurais), Cultura (trabalhadores
urbanos informais) e Qualidade de Vida (dirigentes de movimentos sociais).
Em 2000, como fruto do debate nacional, organizaram-se, além de
um subprograma voltado para o DSS, turmas de elevação de
escolaridade equivalente ao ensino fundamental integrada com educação
profissional, e, em 2001, turmas piloto de alfabetização.
Encontra-se em fase de elaboração uma versão ampliada
e multifinanciada do Programa para o triênio 2002-2004, que deverá
expandir os setores econômicos e sociais a ser atingidos, além
de propiciar intercâmbio com trabalhadores/as de outros países
amazônicos e possuidores de florestas tropicais ameaçadas.
Como sistematização dos trabalhos desenvolvidos pelo Programa
Vento Norte em 1999 e 2000 foram elaborados cadernos curriculares, revista,
cadernos temáticos, livro e uma homepage, além da edição
do projeto político pedagógico do programa.3
Destinados aos educadores, trabalhadores de base e demais trabalhadores
interessados, gestores de políticas públicas e gestores
de processos de DSS. Entretanto, nestas publicações não
se encontram receitas prontas, mas antes elaborações e tentativas
de se pensar para além do estabelecido, “ver com outro olhar,
outras paisagens”. Além do dever ético de socializar
a metodologia produzida com recursos públicos, o objetivo destes
produtos é demonstrar que, se a relação com os conhecimentos
produzidos em outros centros é fundamental, ela não prescinde
de uma produção amazônida, inclusive oriunda do meio
popular e sindical.
Ao contrário, uma das premissas metodológicas do Programa
Vento Norte é que a prática produz conhecimento. E é
este conhecimento, obtido e construído com os trabalhadores na
floresta, na beira dos rios e nas pequenas e grandes cidades da região,
ao mesmo tempo ponto de partida e de chegada, que se constitui em um etnoconhecimento
dos/as trabalhadores/as da região.
4. O Programa Vento Norte e o Etnoconhecimento
Sempre tendo como referência a prática desenvolvida no programa,
reafirmaram-se categorias e noções básicas, processos,
questões éticas e metodológicas pressupostas durante
a elaboração do projeto, bem como outras foram introduzidas.
No curto espaço deste artigo, tentaremos descrever brevemente as
mais significativas para a discussão do etnoconhecimento.
Mesmo sob fogo cruzado, considera-se o trabalho como fundante da sociedade
humana e conformador de identidades, embora não seja o único
fator neste processo. O trabalho produz conhecimento e precisa de conhecimento
para ser efetivado, que sempre implica em algum tipo de educação.
E quando faz isso, cria relações que envolvem poder, como
toda relação social. O engenheiro agrônomo é
socialmente mais valorado que o agricultor. Um detém o conhecimento
“científico” e oficial, fundado na escola; o outro
o conhecimento popular e alternativo, fundado no trabalho. Mas só
o primeiro tem prestígio: “tem mais educação”,
dizem. Entretanto, o trabalho rural, enquanto forma específica
de relação entre ser humano e natureza, cria conhecimentos
sobre a natureza, sobre o trabalho e sobre as relações sociais
que ele engendra. A valorização do trabalho rural pressupõe
uma educação rural “afinada” com ele, ou seja
uma etnoeducação e etnométodos de aprendizagem, bem
como um processo de reapropriação e defesa do etnoconhecimento
tradicional comunitário, que é um tipo de etnoconhecimento.
A cultura, construída cotidianamente nestes processos de produção
e reprodução social, não é constituída
apenas de artefatos “exóticos” pela sua artesanalidade,
mas de um conjunto de saberes codificados em ritos, mitos e outras formas
de expressão, que precisam passar para as próximas gerações.
Mas a cultura rural está sitiada pela cidade, inclusive via satélite.
Neste sentido, uma educação concebida estrategicamente,
a serviço da comunidade rural, enfrenta e resiste à invasão
cultural homogeneizadora e degradante.
Mesmo numa comunidade rural isolada, os processos identitários
não são uniformes e comportam diferenças. Comunidades
indígenas, quilombolas, caboclas, sertanejas e ribeirinhas apresentam
formas diferenciadas de apropriação e reprodução
do conhecimento, com diversas comunidades rurais e urbanas alienando-se
da origem deste conhecimento que tanto utilizam no cotidiano.
A divisão sexual do trabalho e a preservação do conhecimento
ancestral por mulheres e/ou idosos/as contrasta com um índice de
analfabetismo total que beira a 80% nas faixas etárias acima de
50 anos. Ao mesmo tempo, cada vez mais jovens agricultores/as familiares
concluem, ainda que precariamente, o ensino fundamental e médio,
mas os conhecimentos adquiridos praticamente não contribuem para
uma maior qualidade de vida no campo. Ao contrário, lhes empurram
para a cidade.
Embora não haja, neste artigo, condição para aprofundamento,
deve-se destacar a força simbólica da Amazônia, que
levou a apaixonantes discussões sobre o conceito de região
e a noção de território. Os espaços amazônicos,
tão imensos, quanto belos, se impuseram nos currículos como
temas geradores interdisciplinares, inclusive da história regional
pré invasão européia. Isto obrigou a equipe do programa
a se debruçar sobre as ciências geográficas, quase
tanto quanto às ciências da educação.
Do ponto de vista dos processos, foi fundamental entender (e vivenciar)
os diversos tipos de reprodução social das populações
amazônicas, inclusive quanto aos estratagemas de etnoconservação,
frente ao cerco do conhecimento dominante, do qual éramos, aos
olhos dos/as educandos/as, porta vozes. Ao mesmo tempo, perceber a relação
dialética e dialógica entre identidade e alteridade e os
processos identitários daí decorrentes.
A educação tão negada a estas populações,
tão subjugada enquanto projeto individual e coletivo foi resignificada.
Não mais um sonho distante ou uma dádiva, mas um direito.
Não mais imposição de forasteiros iluminados, mas
construída coletivamente, pelos próprios educandos. Não
algo para preencher um vazio, mas para revelar e confrontar o que se sabe.
Desta maneira, as atividades do programa tiveram como objetivo diagnosticar,
mobilizar, valorizar e propiciar a aquisição de conhecimentos,
habilidades, competências e atitudes necessárias ao desenvolvimento
do ser humano como ser integral. Nesse sentido, foram resignificados os
saberes, na medida em que evitou-se a prescrição, negociando
permanentemente o aprendizado com os/as educandos. Os seguintes saberes
e a sua expressão concreta - as habilidades e competências4
foram reconhecidos e trabalhados conjuntamente - numa abordagem interdisciplinar:
· Saber (conhecimento). O etnoconhecimento e os conhecimentos acadêmicos
foram trabalhados sem hierarquização, sendo o primeiro ponto
de partida de um novo ciclo de conhecimento;
· Saber fazer (prática). Tendo o trabalho como princípio
educativo, optou-se pelas expressões tradicionais (caso, por exemplo,
dos barcos artesanais de Igarapé-Miri-Pará ou da agricultura
familiar em Paraná da Eva-Amazonas). Na maioria dos casos, conhecimentos
em aquisição se concentraram nos aspectos do desenvolvimento
sustentável e solidário e gestão do trabalho;
· Saber ser (relações intra e interpessoais). Compreendido
como uma relação indissolúvel, o saber sobre si pressupôs
o saber sobre o outro, a aceitação das diferenças
e a procura da identidade pelo consenso progressivo a respeito dos objetivos
do grupo. A ênfase foi a solidariedade, a vida e ética comunitária,
o trabalho coletivo, a sexualidade e a assunção da condição
de etnia, de gênero de geração, de território
e regional;
· Saber aprender (autonomia). A partir da identificação
das formas de etnoaprendizado, foi enfatizada a resolução
de problemas cotidianos (individuais e coletivos), ferramentas de busca
de novos conhecimentos, estimulada e praticada a análise crítica
das informações e conhecimentos. Além disso, embora
respeitando formas tradicionais de organização, estimulou-se
a autorganização dos/as educandos/as, a tomada coletiva
de decisões e o debate democrático e fraterno;
· Saber transformar (ação sócio-política).
Os saberes anteriores foram mobilizados para a transformação
da realidade da vida e do trabalho dos/as educandos/as com intervenções
nas políticas públicas, na gestão municipal, nas
entidades sindicais e associativas. Observou-se também modificações
própria vida familiar e afetiva dos/as educandos/as com o questionamento
de papéis pré-estabelecidos quanto a gênero e geração.
Pela descrição dos itens anteriores são facilmente
deduzidos os princípios éticos do Programa Vento Norte:
i) respeito ao etnoconhecimento dos sujeitos estendida a todos os saberes
e etnométodos de aprendizagem e ii)a solidariedade, enquanto eixo
articulador do trabalho e da vida comunitária. O resgate do valor
“solidariedade”, apesar do desgaste a que foi submetido pela
sua apropriação por programas do governo federal é
também parte da luta simbólica contemporânea entre
o pensamento “único” de inspiração neoliberal
e o pensamento de uma esquerda que se atualiza, mantendo princípios
rígidos, mas com estratégias flexíveis e táticas
criativas.
Como já foi citado no decurso do artigo, o princípio metodológico
do etnoconhecimento como ponto de partida. Outro princípio, a construção
coletiva do conhecimento, além de permitir a convivência
em classe multiseriadas quanto a educação formal5
, é pressuposto para o saber ser, saber aprender e saber transformar
e sua utilização já se incorporou ao patrimônio
da educação popular. Resta ser abordada, ainda que brevemente
a construção do currículo coletiva, processual e
não linear(teia), uma das principais inovações metodológicas
do Programa Vento Norte, que faz do etnoconhecimento também ponto
de chegada.
A educação popular, em particular a sua vertente sindical,
nunca teorizou sobre currículo. Entretanto, exatamente pela tradição
implícita de construção curricular (derivada da questão
metodológica-aberta e democrática, com respeito aos saberes
dos diversos agentes do processo educativo), fracassaram as tentativas
de “importar” da academia currículos elaborados por
especialistas. As discussões se inclinam, no momento, para uma
apropriação de elementos das teorias críticas e pós-críticas
de currículo(cf. da Silva,1999), em particular as que o definem:
a) como “artefato social e cultural”;
b) determinado social e historicamente, além de o ser pela contexto
da sua produção;
c) como produtor de identidades sociais e individuais particulares;
d) como elemento não-neutro de transmissão de conhecimento
social;
e) implicado em relações de poder e, portanto, transmissor
de visões sociais particulares e interessadas;
f) vinculado a “formas específicas e contigentes de organização
da sociedade e da educação”.
g) implica, para os setores oprimidos, em uma postura ativa, decisiva
na construção do currículo que , de fato atenda às
suas necessidades.
Em outras palavras, mais que conteúdos, geralmente organizados
no tempo de forma sequenciada, o currículo é muito mais:
refere-se também à organização do processo
educacional, aos métodos utilizados, e sobretudo, às relações
de poder explícitas ou implícitas no cotidiano do processo
educativo. Por isso, esta perspectiva leva em consideração
não apenas os conteúdos e relações manifestos,
mas também aqueles que se ocultam, muitas vezes deliberadamente,
para fazer valer o seu papel na manutenção ou no questionamento
do poder estabelecido6.
Tendo em mente que, em que pese a educação ser sempre um
processo intencional, numa concepção crítica de currículo
o ponto de chegada não pode ser totalmente previsto, já
que depende de muitas interações desenvolvidas no processo.
Esta concepção de currículo é coerente com
o papel que a formação da CUT atribui ao sujeito na vida
social em geral e na educação em particular: autor e ator.
Embora lutem pela igualdade de direitos, os trabalhadores não são
iguais em si: são mulheres, homens, negros, brancos e índios,
jovens, maduros e idosos, são sulistas, nordestinos, amazônicos,
etc. Como tais, têm uma identidade, que o currículo, necessariamente
deve refletir7.
Trata-se, portanto, de dois movimentos simultâneos: conhecimentos
vinculados especificamente à realidade cultural local e a expressão
local dos conhecimentos considerados universais. Não considera-los
seria condenar o currículo à aridez da uniformidade. Para
ser coerente com sua concepção de educação,
torna-se necessário que a CUT organize, tanto no espaço
regional como no nacional, processos de construção curricular
envolvendo formação de educadores, pesquisas-diagnóstico,
oficinas de construção curricular e mecanismos de sistematização
permanente.
Na perspectiva adotada pela CUT, no processo educativo, “o educador
também aprende e o educando também ensina”, e esta
postura e atitude metodológica deveriam ser trabalhadas a partir
da própria próprio processo de formação de
educadores, de modo a começar a se constituir em cultura, consolidada
na prática do curso de base. Neste processo de formação
de educadores, estão incluído os “técnicos”,
ou seja, aqueles educadores (que muitas vezes nem tem consciência
que o são) responsáveis pelo conhecimento específico,
ligado à atividade profissional.
Como não se trata de seguir os conteúdos convencionais,
portanto, mais que especialistas em disciplinas, a educação
de adultos na perspectiva popular precisa de educadores com sensibilidade
e abertura aos saberes populares; uma sólida formação
geral; com uma formação pedagógica, em particular
quanto a filosofia, psicologia e sociologia da educação,
didática geral e específica das disciplinas8.
Resumindo, afirma-se que o processo permanente de autoformação
dos educadores é crucial para programas desta natureza, devendo
ser planejado, quanto a conteúdos, metodologia, tempo e recursos.
O ponto de partida da construção curricular e da formação
dos/as educadores/as foram as pesquisas-diagnóstico realizadas
pelos educadores. Estas pesquisas são, ao mesmo tempo diagnóstico
e imersão do educador no contexto , sem as quais torna-se impossível,
dentro da perspectiva pedagógica adotada, realizar os cursos de
base. As pesquisa-diagnóstico incluíram, entre outros elementos:
a reflexão sobre a relação entre conteúdos
e metodologia, que, a partir dos dados primários, deixa de ser
apenas uma diretriz e passa a ser encarada como possibilidade; a reflexão
sobre a relação com os educandos, na medida que serão
revelados, ainda que de forma inicial, o seu saber, as suas demandas e
as suas expectativas9;
a socialização dos resultados, em seminários específicos
com os envolvidos, retornando às comunidades o conhecimento produzido
pela sistematização dos dados.
A questão da interdisciplinaridade, exatamente pelo seu caráter
epistemológico, não pode ser discutida de forma separada
da perspectiva adotada pela educação popular em relação
ao conhecimento e sua construção. Tal construção,
que parte das experiências individuais e coletivas do sujeito trabalhador,
é necessariamente um processo coletivo de reflexão, confronto
e sistematização destes conhecimentos com aqueles oriundos
do desenvolvimento científico, social e cultural da humanidade.
Estes conhecimentos nunca são utilizados isoladamente, mas sempre
como um conjunto de noções que se articulam, contextualizando
e sendo contextualizadas no processo. Verifica-se também que muitos
dos saberes atribuídos ou relacionados, por convenção,
ao ensino fundamental, se fazem presentes no cotidiano do adulto trabalhador,
não sendo percebidos, entretanto, a sua origem nem sendo objeto
de reflexão crítica.
No dizer de Oscar Jara, a sistematização, entre outras questões
“possibilita entender a lógica das relações
e contradições entre os diferentes elementos, localizando
coerências e incoerências...”, localizando a sua contribuição
“insubstituível” na sua capacidade de “poder
realizar uma confrontação entre experiências diferentes,
baseadas no intercâmbio de aprendizagens...”.Tornou-se necessário
rediscutir e aprofundar o sentido da sistematização, estabelecendo
um processo que valorize sua produção por quem participa
das atividades, mas que também promova momentos de elaboração
coletiva que permitam aflorar erros, acertos, dúvidas e certezas.
O que significa “desenvolver metodologias”? Na tradição
acadêmica, significa sistematizar um conjunto de métodos
e técnicas de determinado campo do conhecimento, de modo que a
sua aplicação seja possível para um largo espectro
de problemas. Sistematizar aqui é o mesmo de “tornar um sistema”,
ou seja, transformar o que está disperso em um corpo coerente e
articulado, com uma lógica e uma episteme própria. Desenvolver
metodologias dentro dos princípios políticos, éticos,
culturais e pedagógicos dos trabalhadores é, sobretudo,
demonstrar a viabildade destas metodologias nas condições
brasileiras, de escassez de recursos e extrema diversidade regional. Assim,
surge uma nova acepção: “desenvolver metodologias”,
para a CUT, é sinônimo de disputa de hegemonia no campo da
educação.
Além disso, ao rejeitar modelos prontos, estaria se honrando a
tradição e o patrimônio metodológico da formação
sindical cutista, herdeira da educação popular. apontando
um caminho para a reintegração da educação
do trabalhador, uma educação integral. Assumir tal risco
também aponta para que se leve em consideração, dentre
outras, as questões abordadas anteriormente, fugindo à tentação
de rapidamente denominar metodologia, um conjunto informe de técnicas
utilizadas em um conjunto muito pequeno de experiências.
No sentido de integrar os pressupostos metodológicos acima, foi
desenvolvida uma metodologia de construção, execução
e avaliação curricular, que denominamos “teia”,
caracterizada pela não linearidade e a possibilidade de expansão
e contração de conteúdos a partir dos saberes e demanda
dos/as educandos, com uma teia sendo parte de uma teia maior e contendo
infinitas outras (à semelhança dos fractrais). Ainda em
construção, o poder heurístico desta metodologia
tem sido utilizado na construção coletiva de projetos populares,
elaboração de aulas e cursos, organização
de cursos à distância e na definição de parâmetros
de sustentabilidade em assentamentos rurais10.
5. Educação de trabalhadores/as e etnoconhecimento : algumas
pistas
Como conclusões provisórias, pode-se afirmar que a utilização
criativa de etnométodos nos processos educacionais se revelou de
uma tremenda efetividade social. Sintetizada na proposta do Programa Vento
Norte como desenvolvimento do “saber transformar”, tal efetividade
ultrapassa o processo educativo e as dimensões pedagógicas,
entrando no terreno do político e do simbólico. O “novo
saber” criado e a redescoberta de antigos saberes esquecidos é
parte de um processo que resgatou identidades e as reconstruiu, permitindo
o reencontro entre imaginário e racionalidade, recuperando a auto-estima
e preparando o terreno para a autonomia.
Deste modo, a cultura , enquanto resultado material e imaterial da ação
humana parece um elemento chave para se passar de uma identidade de resistência
à uma identidade de projeto (cf. Castels, 1999). Ou seja, a abordagem
não pode se limitar ao antropológico, devendo se espraiar
para o político, na perspectiva de compreender e fortalecer os
processos identitários no interior de grupos explorados e deles
entre si.
A cultura, assim, poderia ser considerada a partir destes pressupostos,
de um lado descartando as determinações estruturalistas
e , do outro, negando a sua separação do mundo da produção
material e social. Evidentemente, pela profusão de acepções
sobre o tema não será uma síntese fácil, ainda
mais diante da riqueza, pluralidade e diversidade de formas da cultura
amazônica. Na perspectiva dos trabalhadores, muito há o que
se formular, pois aqui se cruzam o trabalho, a região e a cultura.
Neste sentido, também parece importante a apropriação
do acúmulo da teoria feminista em relação ao conceito
de gênero, a aproximação com grupos feministas e a
capacidade de contribuir para a organização das mulheres
trabalhadoras.
Um possível roteiro deste “barco cultural amazônico”
, marcado pela diversidade, seria estudar e compreender: a convivência
entre o ancestral e o moderno; entre as diversas culturas étnicas
e não-étnicas; entre o urbano e o rural; entre o extrativismo
e a agricultura; etc.; a relação com a natureza (utilização
de produtos da floresta e produtos animais; conservação
e manejo, xamanismo); a linguagem, da preservação e ensino
das diversas línguas indígenas ao dicionário “papachibé”11
; mitos (contribuição de diversas etnias); religiões
e crenças; festas religiosas (círios) e populares; artesanato
e cerâmica; culinária; música e danças ( carimbó,
sairé, marabaixo, marujada, boi, etc.). Isto de modo a se pensar
as possibilidades de uma política cultural dos trabalhadores e
trabalhadoras amazônicos.
Do ponto de vista político, as atividades do Programa Vento Norte
contribuíram para uma mudança de cultura sindical, na medida
em que demonstraram os limites do conhecimento adquirido através
da prática sindical tradicional, ao mesmo tempo em que foram estabelecidos
laços com as comunidades e coletivos de trabalhadores/as. Do mesmo
modo, significa um novo olhar da CUT para setores excluídos, inorganizados
ou organizados sob outra lógica, que, até recentemente não
estavam no seu horizonte de ação.
Evidentemente, não foi um percurso tranquilo, mas irregular e caudaloso
como os rios amazônicos. O volume inadequado e atraso de recursos;
as incompreensões dos dirigentes sindicais quanto ao caráter
estratégico da educação nas lutas sociais e a deficiência
de formação política e metodológica dos/as
educadores/as, em muitos casos desviaram o curso do programa, chegando
mesmo a ameaçar a sua essência.
Apesar de tudo, não tenho dúvidas. Todos os indícios
apontam que foi o recurso ao etnoconhecimento ancestral da região
amazônica, inclusive com o desvelamento e valorização
de sua origem multicultural, a viga-mestre da ponte entre saberes e conhecimentos
que ali se confrontaram e se integraram. Assim, interessa de sobremaneira
aos coletivos de trabalhadores a etnoconservação das populações
tradicionais, enquanto tarefa ético-humana, e a sua própria
etnoconservação, enquanto tarefa político-histórica
que lhes permitirá ser o próprio sujeito da sua libertação.
6. Referências
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1
Trabalho apresentado no I Encontro de Etnobiologia e Etnoecologia da Região
Norte, durante a Sessão Temática Integrada “ Etnoconservação:
uma questão das populações tradicionais da Amazônia?”.
Manaus-AM, 05/12/2001
2 Educador Popular, Mestre
e Doutorando em Educação (UFBA). Consultor dos Programas
Vento Norte (Amazônia); Brasil Central (Centro Oeste) e Semear (Bahia),
voltados para a educação básica, profissional e sociopolítica
de trabalhadores/as rurais e urbanos. E-mail: al-merico@uol.com.br .
3 Para 2001, além
de novos cadernos temáticos e curriculares e um novo livro, também
está prevista a produção de um vídeo.
4 Note-se que a classificação
de saberes não segue aquela prescrita pela UNESCO, nem a divulgada
por Morin (1999). Do mesmo modo, a noção de competências
foi resignificada, na medida que se repudiou a dimensão de competição
e vinculação exclusiva com o mercado de trabalho que caracteriza
a sua utilização pelo Ministério da Educação
e pelo Ministério do Trabalho e Emprego.
5 A escolaridade formal
não é critério para a participação
em nenhuma atividade do Programa Vento Norte. Nos cursos que envolvem
elevação da escolaridade, entretanto é pré-requisito
o letramento e o domínio das quatro operações. Assim
podem conviver pessoas com nenhuma escolaridade ou de 1a a 7a série
do ensino fundamental.
6 Isto implica, para os
educadores populares envolvidos em processos de construção
curricular, em uma atenção redobrada, não apenas
para evitar que elementos da ideologia dominante se reproduzam , como
para mesmo oriundas do campo popular não sejam simplesmente reproduzidas
fórmulas exitosas de outras regiões e culturas.
7 No campo educacional,
parece óbvio que as posturas dominantes tendem a elaborar o seu
currículo e impo-lo aos demais, caracterizando-o como nacional.
Deve ser aprendido apenas aquilo que a elite considera que deve ser aprendido.
Isto se refere, não apenas os conteúdos, mas também
valores e ideologias. Este é o caráter do conhecimento “oficial”
(Apple, 1979), apresentado como científico e colocado em oposição
ao saber popular. Neste sentido, uma ação contra-hegemônica
deve recuperar o status do saber das classes oprimidas, considerando-o
como ponto de partida do processo de conhecimento(Freire,1981). Esta discussão,
de forma e conteúdo, balizou a construção do currículo
do Programa Vento Norte.
8 Na prática, entretanto,
alguns problemas tem sido observados. Parte deles se referem à
resistência (oriunda de uma grande insegurança) do docente
licenciado em trabalhar com temas “estranhos” à sua
formação original. Também se verifica, em menor grau,
um certo elitismo, em compartilhar a condução do processo
educativo com “alguém sem formação”.
Estes problemas parecem se originar de um lado, pela não superação,
por parte dos educadores, do chamado paradigma disciplinar.
9 Aqui é importante
salvaguardar o lado ético da relação, pois os objetivos
(da pesquisa-diagnóstico e do possível curso a ser implantado)
deverão ser revelados previamente aos trabalhadores;
10 O processo de sistematização
e teorização da metodologia da “teia” está
sendo conduzido pelo autor e pela Professora Eunice Léa de Moraes,
do Centro de Educação da Universidade Federal do Pará.
11 Dicionário que
reúne palavras e expressões tipicamente paraenses (Sobral,
1996).
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