ETNOBOTÂNICA E BIOPIRATARIA NA AMAZÔNIA

Charles R. Clement ; Miguel N. Alexiades

Ao longo deste século, etnobotânicos identificaram três classes de conhecimento indígena dos primeiros povos da Amazônia que possuem potencial econômico nos mercados regional, nacional e mundial: (1) plantas ou animais úteis, não manejados ou cultivados (especialmente plantas medicinais, tecnológicas, recreativas), e o conhecimento a elas associado; (2) animais ou plantas domesticados, sempre manejados ou cultivados (especialmente fruteiras, amiláceas, hortaliças, medicinais, tecnológicas, recreativas, fibras) e o conhecimento a elas associado; e (3) práticas de manipulação de ecossistemas (paisagens domesticadas em vários graus). Na primeira classe, existem entre 500 e 2000 (talvez mais) espécies na Amazônia, enquanto na segunda existem pelo menos 100. O que mais chama a atenção da mídia hoje são as plantas medicinais, tanto da classe 1 como da 2, pois a indústria farmacêutica gera US$340 bilhões anualmente e não existe notícia mais atrativa que um remédio milagroso que gerará uma fortuna para seu descobridor. É por isto que a biopirataria é também um tema que fascina a mídia.
As classes de conhecimento 1 e 2 são passíveis de biopirataria, porque tem demanda no mercado; a classe 3 não tem demanda e, portanto, não é objeto de pirataria. A biopirataria pode ser definida como a remoção de uma planta, animal ou conhecimento de uma comunidade com a intenção de lucro econômico em outro local, sem negociação com a comunidade sobre a repartição de benefícios. A denominação 'biopirataria' só ganhou destaque após a Convenção da Diversidade Biológica, quando a soberania nacional sobre biodiversidade era reconhecida. Antes da Convenção, existia 'intercâmbio' praticado por governos e indivíduos, resultando na distribuição atual de plantas e animais agrícolas (p. ex., café, cana de açúcar, cabras etc.) e ornamentais, bem como de ervas daninhas, pragas e doenças. Na época pré_Convenção, biodiversidade era 'patrimônio da humanidade.'
Normalmente, a mídia somente dá atenção à biopirataria quando é praticada por estrangeiros, mas num país de dimensões continentais, com as desigualdades regionais do Brasil, poderia ser importante reavaliar isto, pois este tipo de transferência realça as desigualdades dentro do país também. Embora a mídia faça muito barulho, a biopirataria parece ser pouco comum hoje, talvez porque a maioria das plantas e animais com potencial econômico evidente já foi distribuída, tanto dentro como fora do Brasil. Portanto, acredito que a biopirataria é relativamente pouco importante na economia nacional e mundial atualmente, embora possa ser muito importante para uma comunidade tradicional ou indígena cujos direitos foram ignorados.
Mais importante é quando uma planta, animal ou conhecimento é coletado para estudo e publicação por um etnobotânico ou outro cientista, e um uso econômico é descoberto por um terceiro posteriormente. Isto não é biopirataria no sentido comum do termo, embora possa ter a aparência de biopirataria se a sequência de eventos não é conhecida. Na realidade, esta sequência de eventos é a prática da ciência como sempre tem sido feita. No entanto, com a introdução de (1) a soberania nacional sobre a biodiversidade, (2) os direitos de propriedade intelectual sobre seres vivos e processos biológicos, (3) o reconhecimento dos direitos de populações indígenas e tradicionais sobre seus recursos biológicos, genéticos e intelectuais, e (4) a monetarização de quase tudo no modelo econômico vigente, o etnobotânico e outros cientistas se encontram em território ético novo.
A mudança de paradigma na forma como a biodiversidade é vista socialmente, de patrimônio da humanidade para patrimônio nacional (e até individual, quando patenteado), transforma a prática da ciência, tanto para etnobotânicos, como para outros cientistas. Queremos assinalar apenas dois aspectos desta transformação: uma questão ética e uma falha econômica.
O cientista ganha reconhecimento por meio de suas publicações e o etnobotânico é um cientista comum neste respeito. No entanto, o etnobotânico é diferente em que sua área de estudo engloba as três classes de conhecimento indígena, duas delas muito visadas dentro do novo paradigma bio_econômico. O etnobotânico também tem responsibilidades maiores que um cientista de laboratório, pois ele precisa respeitar os direitos de seus parceiros indígenas e tradicionais, sem os quais não pode fazer pesquisa.
Agora, se um etnobotânico publica o nome de uma planta medicinal, sua composição químico_farmacêutica e o receituário de um pajé sobre como a planta deverá ser usada, como este etnobotânico garantirá que (1) a população indígena terá seus direitos intelectuais respeitados e receberá uma parte de qualquer benefício que poderá aparecer, e (2) a soberania nacional será respeitada também? Se publica, a informação estará no domínio público e um terceiro pode patentear o processo de isolamento do princípio ativo e, possivelmente, um novo remédio, ganhando assim um lucro monetário. Se não publica, não ganha reconhecimento como cientista. Isto é um dilema ético sério.
A Convenção da Diversidade Biológica dá direitos aos países e conclama a estes mesmos países a garantir que o conhecimento tradicional seja reconhecido como propriedade intelectual, para que os povos tradicionais possam participar da repartição de benefícios que poderão aparecer. O Brasil não possui leis que se referem a este dilema ético, embora a Medida Provisório de Acesso (MP 2186-16) trata de alguns aspectos do dilema. No entanto, a questão está levantada: publicar ou não publicar?
A falha econômica é diretamente relacionada ao dilema ético. Para que um componente da biodiversidade seja considerado um recurso biológico ou genético, precisa ter valor agregado. Ou seja, precisa ter um investimento humano que o transforma em recurso. No caso dos três conhecimentos indígenas discutidos aqui, o investimento foi feito ao longo de milênios pelos primeiros povos, tanto no acúmulo de conhecimentos como na seleção praticada para criar plantas e animais domésticos. Na economia atual, este investimento é chamado de pesquisa e desenvolvimento (P&D). No Brasil, estes investimentos não estão sendo feitos em escala proporcional à sua bio_ e sócio_diversidade. Isto é uma falha econômica, pois uma oportunidade está sendo deixada de lado.
Se a maioria das plantas, animais ou conhecimentos oriundos do Brasil gerando lucros em outros países houvesse sido descoberta primeiro por brasileiros, não haveria tanta preocupação sobre biopirataria, pois sua transferência para o exterior seria apenas uma conseqüência do comércio livre, tão pregado por governos neoliberais. Se o Brasil investisse em P&D sobre sua biodiversidade e tivesse a Lei de Acesso aprovada na sua forma definitiva (em lugar de como Medida Provisória), as publicações poderiam ser feitas em colaboração entre a população indígena ou tradicional, o etnobotânico (tanto nacional como internacional) e um laboratório farmacêutico, e o dilema de publicação seria resolvido.
Portanto, a biopirataria e a descoberta posterior de valor econômico são importantes indicadores da falta de investimento em P&D de novos produtos e cultivos no Brasil. Posso afirmar sem receio que um investimento à altura do potencial da biodiversidade amazônica faria com que a biopirataria saisse definitivamente da mídia!
Dos cinco principais biomas do Brasil (floresta amazônica, mata atlântica, cerrado, caatinga, pantanal), o da floresta amazônica ocupa 50% do país e possui mais biodiversidade que os outros juntos. No entanto, a Amazônia somente recebe 3% dos investimentos em P&D do governo federal e só tem 500 pesquisadores e professores doutores trabalhando. Em 1999, o orçamento federal previa R$250 milhões para investimentos em P&D na Amazônia, mas a crise cambial reduziu isto para algo como R$90 milhões. Isto representa apenas R$18 por km2 e R$1.800 por espécie de planta superior! Este nível de investimento deveria ser a notícia da mídia, pois representa oportunidades não realizadas num país que precisa urgentemente de novas oportunidades para sua população pobre e crescente.
É certo que o governo federal reconhece esta necessidade, pelo menos parcialmente, pois criou o Programa Brasileiro de Ecologia Molecular para o Desenvolvimento Sustentável da Amazônia, o PROBEM, e uma organização social, a BioAmazônia, para coordenar e executar seus projetos. Infelizmente, a BioAmazônia entrou em crise quando não internalizou o espírito do Projeto de Lei de Acesso, da Senadora Marina Silva, durante a elaboração de um contrato com a multinacional Novartis. Este crise atrasou todos os investimentos em PROBEM, que eram previstos na ordem de R$60 milhões em 5 anos. Infelizmente, também, nem todos destes recursos foram dinheiro novo, de forma que os investimentos em P&D aumentarão em algo, mas não em proporção ao potencial.
Entre os objetivos traçados pelo PROBEM está o uso do conhecimento indígena para ajudar a priorizar os investimentos e identificar plantas e animais com potencial econômico. Isto abrirá espaço para etnobotânicos colaborarem com o programa e poderá ajudar a amenizar o dilema ético via uma colaboração estreita entre etnobotânicos, comunidades tradicionais (tanto indígenas como caboclas) e os laboratórios do Centro de Biotecnologia da Amazônia, do PROBEM. É urgente a votação e a regulamentação completa da Lei de Acesso para dar o fundamento legal a estas colaborações e garantir a repartição equitativa de benefícios. O processo levando a isto está caminhando muito lentamente, com o primeiro passo, a criação do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (Decreto 3.945), ocorrendo somente no final de novembro de 2001.
É também urgente expandir os investimentos em P&D na Amazônia, porque o potencial é muito maior do que pode ser trabalhado por um só programa. Afinal, existem três institutos do MCT, seis centros da Embrapa, nove Universidades Federais, três Universidades Estaduais e numerosas ONGs e universidades particulares que poderiam colaborar nesta tarefa na Amazônia Legal. Lembre: a falta de investimentos nestas instituições é um convite à biopirataria por parte de terceiros.

Agradecimentos
Agradecemos ao Dr. Darrell A. Posey, Oxford University, para discussões e idéias que contribuiram para esta apresentação.