O PARQUE NACIONAL DO JAÚ E A ETNOCONSERVAÇÃO: A INSURREIÇÃO DOS SABERES SUJEITADOS

Luiz Fernando de Souza Santos 1


No presente texto, examinaremos a questão da criação de unidades de conservação de uso indireto em espaços habitados tomando como unidade de fundamentação empírica, o Parque Nacional do Jaú (PNJ).
Com 2.272.000 ha, o PNJ foi criado pelo Decreto Federal n° 85.200, de 24 de setembro de 1980. Está localizado na bacia do rio Jaú, afluente da margem direita do Rio Negro, no Estado do Amazonas, a aproximadamente 200km a noroeste de Manaus.

As bases que fundamentaram a criação desta unidade de conservação foi o modelo de parques sem residentes. Um dos atrativos para a transformação da bacia do rio Jaú em um parque nacional foi a sua baixa densidade demográfica que, mesmo assim, deveria ser vista com cautela pois "a permanência dos habitantes no local da reserva talvez não seja aconselhável' (Schubart et alii, 1977).

Passados vinte anos desde sua criação, ainda vivem no interior do Parque, segundo o Plano de Manejo do mesmo, 886 pessoas que estão reunidas em 143 grupos domésticos distribuídos entre as diversas localidades existentes na área. A economia desta população está baseada no extrativismo vegetal, na pesca, na caça e na atividade agrícola. Do ponto de vista político têm organizado-se através da constituição de comunidades, geralmente forjadas para conseguirem escolas e outras benfeitorias propiciadas pelas prefeituras de Barcelos e Novo Airão.

Ao passar a atuar na área do PNJ, a Fundação Vitória Amazônica (FVA) , uma organização não-governamental ambientalista que se propõe a contribuir na consolidação de unidades de conservação na Bacia do Rio Negro se colocou contra a exclusão dos agentes sociais que habitam a área do Parque, compreendendo que a consolidação desta unidade de conservação pressupõe o envolvimento dos mesmos no seu manejo. Esta postura da FVA está, por um lado, no sentido contrário da legislação ambiental brasileira, que prevê no caso de Parques Nacionais a saída dos moradores que habitem a área core dos mesmos e, por outro, articula-se com tendências internacionais que postulam a presença das populações locais, as ditas tradicionais, na planificação de tais áreas de proteção ambiental.

O resultado desta posição da FVA foi a produção de um Plano de Manejo para o PNJ que fundamentou-se tanto no conhecimento técnico-científico quanto no conhecimento dos agentes sociais locais.

Se os procedimentos clássicos de inventário de espécies da flora e fauna foram fundamentais para uma caracterização da área do PNJ, esta, no entanto só pôde ser complementada com o conhecimento das atividades e do manejo ecológico empregados pelos moradores locais, uma vez que estes têm uma maior familiaridade com os diversos ambientes do parque do que os agentes externos.

Sobre o conhecimento que os agentes sociais locais têm da área a FVA (1997: 43) diz o seguinte: a utilização dos recursos naturais disponíveis no PNJ pela população tradicional está vinculada à necessidade de subsistência do grupo doméstico. (...)São as diferentes práticas e usos dos recursos naturais, de acordo com os ciclos da natureza, utilizando vários ecossistemas, que evidenciam a existência de um conjunto de conhecimentos tradicionais que embasa a subsistência dos moradores dos rios da área do Parque.

Estes caracteres dos moradores do PNJ podem ser aproximados daqueles sistemas culturais que Alier (1998: 37) tem identificado como portadores de preocupações que trazem imanente às suas lutas cotidianas uma percepção ecológica peculiar, "porquanto seus objetivos são as necessidades ecológicas para a vida: energia (as calorias da comida para cozinhar e aquecer), água e ar limpos, espaços para abrigar-se. (...) habitualmente tratam de manter ou devolver os recursos naturais à economia ecológica, fora do sistema de mercado generalizado, de valoração crematística, da racionalidade mercantil, o que contribui para a conservação dos recursos naturais já que os mercado os infravalora".

Aprofundando as observações sobre a peculiaridade do uso dos recursos engendrado pelos agentes sociais que residem no PNJ, podemos percebê-Ia ainda como fruto de uma cosmologia que concebe a relação entre homem e natureza como uma relação entre sujeitos que têm a humanidade como condição. Homens, animais e plantas têm em comum o fato de serem sujeitos e a distinção que existe entre eles é "uma distinção entre uma essência antopomorfa de tipo espiritual, comum aos seres animados, e uma aparência corporal variável, característica de cada espécie" (Castro, 1996: 117).

Assim sendo, o uso dos recursos naturais por parte dos residentes na área do PNJ, ocorre num espaço e tempo diferentes daqueles concebidos pela razão ocidental.

Cachoeiras, lagos e trechos de rios possuem seus "donos" (seres espirituais que protegem estes espaços e cuja forma corpórea pode ser a de um peixe-boi, uma cobra-grande, uma pirara gigante ou um jacaré); a mata tem mãe. A infração de determinadas regras de convivência com estes ambientes pode desencadear a ira destes “donos”, materializada em doenças e até morte.

O calendário anual destes agentes sociais está tomado por dias santos, nos quais o tempo sofre uma suspensão para que se festeje ou os "guarde". Em alguns destes dias, como por exemplo durante a semana santa, determinadas espécies de carne são proibidas como alimento. Trabalhar nas roças ou em atividades de caça e extrativismo nos períodos sagrados pode trazer o "castigo" dos santos.

De um modo geral, os dias comuns são também marcados por horas sagradas, espiritualmente fortes: meio-dia, seis horas da tarde e meia noite, são horários que devem ser na medida do possível "guardados".

Este conhecimento local, periférico, não-científico, cosmologicamente diferente, foi parte importante nos debates e oficinas que tinham por objetivo a elaboração do Plano de Manejo do PNJ; foi decisivo para a proposta de zoneamento da área, uma vez que a definição das zonas de uso especial e de recuperação, baseou-se nas informações que detinha.

Compreender o como, o por que, este conhecimento dos agentes sociais residentes na área do PNJ foi considerado relevante quando da elaboração do seu Plano de Manejo pode ser um desafio analítico interessante. E o ponto de partida para a busca de tal compreensão é o clássico embate entre um modelo de proteção da natureza que exclui os agentes sociais locais de áreas protegidas, como parques nacionais, e o modelo que propões a inclusão destes.

Como foi dito no início deste texto, a concepção de proteção da natureza que estava na base da criação do PNJ foi a que propunha a exclusão das populações locais. Grosso modo, podemos assinalar que este modelo resulta da hegemonia de um conhecimento técnico-científico cujos efeitos sobre outras formas de conhecimento são de interdição, pressão e coerção.
Segundo Foucault (2000; 1996), uma da marcas fundamentais das modernas sociedades ocidentais é o desejo de poder que é subjacente aos discursos que se dizem científicos. Nesta vontade de poder, outros saberes são desqualificados como ingênuos, não-conceituais ou conceitualmente insuficientes, hierarquicamente inferiores ou abaixo de um nível de cientificidade ótimo.

Estes saberes sujeitados seriam formados por duas categorias distintas: de um lado, um saber cujo conteúdo é meticuloso, exato, técnico, erudito, e de outro lado, um saber que é local, particular, diferente.

A crítica e a contestação dos discursos hegemônicos se dariam através da insurreição dos saberes sujeitados contra os seus efeitos centralizadores. Não se trata de se ser anti-científico, mas de combater os efeitos de poder próprios de um discurso considerado científico.

No caso do PNJ, podemos perceber a inclusão dos agentes sociais locais nos cálculos de manejo e gestão, como resultado de um insurreição de saberes sujeitados contra os efeitos de poder produzidos pelo discurso biológicopreservacionista que fundamentou a criação desta uc.

O discurso conservacionista da FVA, de pesquisadores não-alinhados ao modelo preservacionista de criação de uc's e dos agentes sociais residentes em localidades situadas às margens dos rios Jaú, Unini, Carabinani e Paunini, compõe o mosaico de saberes sujeitados que se insurgiram contra o discurso até então hegemônico e estão, aos poucos, desenhando um modelo de concepção de área protegida menos excludente e autoritário.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALlER, Juan Martínez. "Da economia Ecológica ao Ecologisrno Popular'. Blumenau: Editora da FURB, 1998.
BEGOSSI, Alpina. "Escalas, Economia Ecológic~ e a Conservação da Biodiversidade". In: CAVALCANTI, Clóvis (org.). Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e Políticas Públicas. São Paulo: Editora Cortez: Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 1999.
CASTRO, Eduardo Viveiros de. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana, vol. 2, n.o 1, 1996.
DIEGUES, Antônio Carlos. Saberes Tradicionais e Etnoconservação. In: DIEGUES, Antônio Canos e VIANA, Virgílio M. (orgs.). Comunidades Tradicionais e Manejo dos Recursos Naturais da Mata Atlântica. São Paulo: NUPAUB, 2000.
FOUCAUL T, Michel. Em defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
FVA. A Gênese de um Plano de Manejo. Manaus: FVA, 1997.
PLANO DE MANEJO DO PARQUE NACIONAL DO JAú. Manaus: FVA/IBAMA, 1998.
SCHUBART, Herbert et aI/i. Relatório da Excursão ao Rio Jaú Com Vistas a Instalação de uma Reserva Natural. Manaus, INPA, 1977 (mimeo).

1 Sociólogo da Fundação Vitória Amazônica