Política de proteção dos
conhecimentos tradicionais e a autonomia dos povos indígenas
O governo federal, através da Medida Provisória 2.186-16,
de 23/08/01, com força de lei, dispôs “sobre o acesso
ao patrimônio genético, a proteção e o acesso
ao conhecimento tradicional associado, a repartição dos
benefícios e o acesso à tecnologia e a transferência
de tecnologia para sua conservação e utilização”.
O debate sobre a temática, que vem se dando no Congresso Nacional,
foi atropelado pelo Executivo, que recorreu a MP para regulamentar a matéria.
O Senado aprovou o Substitutivo do senador Osmar Dias ao PL 306/98 da
senadora Marina Silva, que atualmente se encontra na Câmara dos
Deputados. O deputado Jacques Wagner apresentou o PL 4.579/98 na Câmara
dos Deputados, com base no projeto de Marina Silva e o Executivo encaminhou
o PL 4.551/98. Enquanto a MP 2.186 e o PL do Executivo privilegiam os
aspectos econômicos e tecnológicos, os demais PLs tentam
resgatar a importância da biodiversidade e da sócio diversidade.
Vamos neste texto, discutir, sobretudo, a questão do acesso ao
patrimônio genético e ao conhecimento tradicional no contexto
mais amplo das lutas históricas dos povos indígenas.
A partir da segunda metade do Século XX, quando tudo indicava que
estava próximo o fim de todos os povos indígenas do Brasil
e o governo fazia planos para determinar quantos anos ainda ia demorar
em consumar o etnocídio, renasce a força de um movimento
indígena, que se articula em todo país, com a bandeira do
direito aos territórios tradicionais.
Com a derrubada do projeto de emancipação compulsória
da Ditadura Militar, em 1978, em aliança com setores importantes
da sociedade brasileira, os povos indígenas acumulam força
e se articulam e organizam para, durante o processo Constituinte, dez
anos depois, influenciar decisivamente no destino que lhes havia sido
oficialmente imposto pelo Estado Brasileiro.
Está dito com todas as letras na Constituição Federal,
promulgada em 1988, que os índios tem o direito originário
sobre as terras que tradicionalmente ocupam, o usufruto exclusivo das
riquezas nelas existentes, que lhes são reconhecidas as organizações
sociais, usos costumes e tradições e que o Estado deve proteger
todos os seus bens.
Curiosamente, as relações entre o Estado e os povos indígenas
que mudaram radicalmente no plano formal, mudaram muito pouco na prática.
A Medida Provisória 2.186, de acesso aos recursos genéticos
é apenas mais um exemplo.
Senão vejamos.
1. A lei trata do acesso aos recursos genéticos, sua proteção
e o acesso aos conhecimentos tradicionais associados. Trata por tanto
de uma questão afeta diretamente aos povos indígenas em
relação ao direito às suas terras, ao usufruto exclusivo
das riquezas naturais e sobre os seus conhecimentos acumulados ao longo
da história. É, portanto, razoável imaginar que essa
lei, baixada através de ato do Executivo, tenha sido discutida
pelo governo com os diferentes povos e suas organizações
e que os mesmos tenham a exata noção do que foi regulamentado.
Não foi isso que aconteceu. A verdade é que a maioria dos
povos indígenas sequer sabe da existência dessa lei. Não
é difícil imaginar, a partir daí, o poder real que
os povos indígenas vão ter de negar o acesso aos seus conhecimentos
tradicionais, sobretudo quando estes apontam para um potencial econômico,
mesmo que esse direito esteja escrito na lei.
2. Outro desrespeito é o não reconhecimento da existência
dos povos indígenas no Brasil, qualificados na lei como “comunidades
indígenas”. A que propósito serve essa confusão
intencional entre a parte “comunidade indígena” e o
todo “povo indígena” a não ser para negar o
direito à diferença e o sujeito coletivo?
3. O artigo 7º, inciso II, define conhecimento tradicional associado
como sendo a “informação ou prática individual
ou coletiva de comunidade indígena ou de comunidade local, com
valor real ou potencial, associada ao patrimônio genético”.
O que tem valor é aquilo que pode ser transformado em mercadoria.
Como se fosse possível separar conhecimento tradicional e o recurso
genético existente em uma terra indígena. A lei ainda fala
de uma repartição justa e eqüitativa dos benefícios
derivados do acesso ao patrimônio genético. Qual será
a base de cálculo para estabelecer o preço justo para uma
cultura se apropriar de outra.
Como afirmamos anteriormente essa lei apenas é mais um exemplo
de desrespeito aos direitos históricos e constitucionais dos povos
indígenas.
Podemos verificar que todos os programas oficiais seja na saúde,
na educação, na economia, propõem uma atenção
específica e diferenciada em relação aos povos indígenas.
A realidade, no entanto, é bem diferente. Concretamente esses programas
continuam trabalhando com a mesma lógica integracionista apontada
pela legislação anterior a Constituição de
1988. Trabalham com a perspectiva de que os projetos de vida dos povos
indígenas são inviáveis e por isso é preciso
preparar os seus membros para competir no mundo capitalista globalizado.
A estratégia principal é convencer os índios a assumirem
o complexo de inferioridade, preconceito alimentado historicamente, desafiando-os
a provar a sua capacidade, fora do seu contexto cultural, com os instrumentos
da sociedade hegemônica, e inclusive, transferindo-lhes responsabilidades
que são do próprio Estado.
As políticas indigenistas oficiais apresentam, por isso, contradições
flagrantes. Exemplificando:
· Na saúde
– os DSEIs (Distritos Sanitários Especiais Indígenas)
deveriam, entre outros critérios, na sua configuração
geográfica, observar as áreas culturais. Na sua definição
feita as pressas em gabinete, esse critério, fundamental para uma
atenção específica e diferenciada, pouco foi considerado,
assim como foi relegado a segundo plano a participação indígena
no processo.
– Os profissionais contratados desconhecem a realidade cultural
dos povos e existe pouquíssimo empenho para que tenham uma formação
específica. Não raras vezes alimentam o preconceito em relação
ao conhecimento tradicional. A sua contratação vinculada
a Convênios, e portanto, passageira também desestimula sua
formação.
– A medicina alopática é apresentada como a solução
para todos os problemas e, portanto, substitui a medicina tradicional.
Na proposta original ela deveria exercer o papel de complementaridade.
– O controle social em muitos distritos é extremamente frágil
com os conselheiros distritais, sem informação e compreensão
suficiente sobre o funcionamento do Distrito.
– Os recursos abundantes oferecidos pelo governo para terceirizar
a assistência e convencer organizações indígenas,
ONG e Igrejas para assinar os Convênios começam a escassear.
Agora setores do governo estão convocando a sociedade civil para
pressionar o próprio governo e o Congresso Nacional para manter
os recursos.
– A proposta de que os DSEIs tivessem autonomia administrativa e
orçamentária foi rejeitada.
· Na educação
- A educação escolar indígena, precisa se adaptar
a estrutura existente seguindo o ensino fundamental, médio e superior
- A escola continua alimentando expectativas para fora das comunidades
indígenas e provocando o êxodo.
- O atrelamento aos Estados e Municípios promove processos de educação
escolar distintos dentro de um mesmo povo ou então leva para dentro
das terras indígenas, além do preconceito, a desinformação
sobre os direitos indígenas.
Ë, no entanto, na questão da demarcação e garantia
das terras indígenas que aparecem os maiores problemas e onde os
povos indígenas enfrentam a luta decisiva pelo seu futuro. A demarcação
de terras indígenas importantes como a Yanomami, a do Alto e Médio
Rio Negro, do Vale do Javari entre muitas outras de extensões menores
aqui na região norte foram conquistas que precisam ser asseguradas
e garantidas.
Existem sinais muito evidentes de que está em curso uma grande
ofensiva para que os limites das terras indígenas na Amazônia
sejam, de tal modo relativisadas, que possam ser ultrapassadas, sempre
que houver algum interesse econômico ou político externo.
Esses sinais são emitidos por parlamentares com seus freqüentes
ataques aos direitos indígenas, sobretudo a terra, inclusive através
de projetos de lei ou de emendas constitucionais. Aparecem também
na criação de municípios no interior das terras indígenas,
como aconteceu em Roraima e na atitude dos militares do Calha Norte, para
os quais, o limite das terras indígena não tem o menor significado.
As violências físicas e as agressões culturais são
atribuídas a seu papel na segurança nacional. Ainda semana
passada, dia 29711, o CIR – Conselho Indígena de Roraima,
divulgou a seguinte informação: “Cerca de 500 homens
do Exército Brasileiro estão na terra indígena Raposa
Serra do Sol, especificamente, na região das Serras (município
de Uiramutã), onde está sendo construído o 6º
Pelotão de Fronteiras. As comunidades da região estão
amedrontadas, pois não foram comunicadas sobre a realização
da manobra militar.... Centenas de militares com armamento pesado foram
vistos pelos índios na região de Surumu, que faz limite
com a terra indígena São Marcos. Após reação
do Conselho Indígena de Roraima, o Comando da 1ª Brigada de
Infantaria de Selva, comunicou que contingentes de soldados, a partir
de hoje, 29, estariam passando pelas aldeias Maturuca, Lage, Uiramutã
e Willimon, coincidentemente, comunidades próximas ao 6º Pelotão
que resistem a implantação do quartel. A falta de comunicação
entre o comando do Exército e as comunidades indígenas causou
revolta, pois, como não houve aviso, as lideranças consideram
que as terras estão sendo invadidas. O Conselho Indígena
de Roraima avalia que a presença ostensiva do Exército em
Uiramutã visa intimidar as lideranças indígenas que
resistem à implantação do 6º Pelotão
de Fronteira na região de Uiramutã”.
Existe também a informação de que os militares estão
chegando na Calha Sul e curiosamente identificando terras indígenas
para a instalação de equipamentos do Sivam.
O Decreto 1.775/96 é outra medida que foi tomada para fragilizar
o direito dos índios a terra, ao desconsiderar o direito originário,
para a definição dos limites.
A intenção de relativisar as demarcações das
terras indígenas também aparece muito claramente na proposta
do governo para o “Estatuto das Comunidades Indígenas”,
particularmente no capítulo do “aproveitamento dos recursos
naturais minerais, hídricos e florestais”. É a mesma
lógica da lei de acesso aos recursos genéticos.
O primeiro passo para uma política de proteção dos
conhecimentos tradicionais passa pela compreensão de que os mesmos
foram elaborados dentro de contextos culturais específicos, e aprimorados
ao longo da história. Estes conhecimentos, por isso devem ser valorizados
e respeitados na sua integralidade, e não apenas sob a ótica
míope do mercado capitalista. São conhecimentos construídos
por povos que buscaram a sua segurança e o seu futuro na terra,
a qual nunca consideraram como mercadoria, que pudesse ser apropriada.
Trata-se de assegurar aos povos indígenas a garantia efetiva de
suas terras e o controle sobre o que existe dentro delas, respeitando
a sua autonomia, com base nos parâmetros constitucionais e num regime
jurídico próprio.
Com essas premissas, que exigem uma profunda mudança nas relações
entre o Estado, a sociedade brasileira e os povos indígenas, estarão
criadas as condições de um diálogo, para além
das aparências.
Manaus, 03 de dezembro de 2001
Francisco Loebens
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